Áreas de intervenção da PPP de habitação no centro
Com liminar, promotor de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo consegue “tempo para negociar” com gestores a participação popular no projeto. Reunião entre MP, Secretaria Estadual de Habitação, Agência Casa Paulista e Instituto Urbem está marcada para dia 1/10
A parceria público-privada (PPP) de habitação da Agência Casa Paulista, do Governo do Estado de São Paulo, que pretende construir mais de 20 mil unidades habitacionais de interesse social no centro da cidade, está temporariamente paralisada. A notícia foi dada ontem (18/9) pelo promotor Maurício Ribeiro Lopes, da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da capital. A paralisação se deu no dia 23 de agosto, depois que o desembargador Xavier de Aquino, da 1a. Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, deferiu liminar favorável ao recurso enviado pelo Ministério Público. Outros dois desembargadores ainda precisam emitir suas decisões – que podem ser favoráveis ou não. “Isso deve acontecer nos próximos dias”, informou o promotor Ribeiro Lopes. Mas com este primeiro parecer favorável o governo paulista já não pode mais dar segmento ao projeto, para o qual estava sendo anunciado o lançamento, em breve, de edital de licitação das empresas que executarão as obras. “O que fizer será nulo, dinheiro perdido, caso de improbidade”, explicou o promotor sobre as implicações da liminar.
O recurso foi enviado por Lopes ao tribunal depois que ele teve liminar negada em primeira instância, em julho desse ano, pelo juiz de direito Randolfo Ferraz de Campos, da 14a. Vara de Fazenda Pública. O promotor pedia a paralisação da PPP de habitação com o argumento de que não houve participação popular suficiente em nenhuma fase do projeto. Para negar a liminar, o juiz entendeu que houve, sim, participação pública satisfatória, e que “conceder aqui a liminar na forma como se requereu na ação implicará atrasar significativamente a implementação da PPP Habitacional (…)”. Leia aqui a decisão do juiz na íntegra.
Promotor Maurício Ribeiro Lopes. Foto: Edson Lopes J. / Agência de notícias do Governo do Estado de SP
Com a paralisação de agora, o promotor diz que ganha tempo para negociar com o poder público a participação da sociedade no desenvolvimento do projeto. “O que eu tenho muito receio desse modelo de PPP com essa finalidade é que, na verdade, os preços podem ser ditados por uma lógica perversa de mercado, visando o lucro, e não por uma lógica que é do direito de moradia, que é de proteção de partes mais fracas”, diz Ribeiro Lopes. “Eu quero negociar primeiro com o poder público para abrir à sociedade a discussão disso. Começar do zero. Eu não quero aproveitar o que está feito. Dizer que o Urbem investiu… azar do Urbem [vencedor da concorrência para desenvolver o projeto urbanístico da PPP]. Não foi dinheiro público gasto. Foi dinheiro privado e em benefício privado. Se foi um mau investimento isso é problema deles. Não temos nenhum compromisso com o Urbem em comprar a ideia deles como veio. O que eu acho importante é discutir essa política e abrir para a sociedade”.
O promotor informou que já está marcada uma reunião para o dia 1 de outubro, no Ministério Público, entre ele e o secretário estadual de Habitação, Sílvio Torres, o subsecretário da Agência Casa Paulista, Reinaldo Iapequino, e o diretor do Instituto Urbem, Philip Yang.
Confira a seguir a entrevista que o Arquitetura da Gentrificação fez ontem, 18/9, com o promotor Maurício Ribeiro Lopes. Nela, ele fala sobre a falta de transparência da PPP da Agência Casa Paulista, da falta de critério do decreto de desapropriações assinado por Geraldo Alckmin e sobre a evidência de interesses obscuros por trás do projeto.
O que o Ministério Público questiona em relação à PPP do centro?
Estamos discutindo a questão da participação popular na formulação da política pública na área de habitação na região central da cidade. É absurdo imaginar que isso pode ser feito sem a participação popular. Existem várias Zonas Especiais de Interesse Especial (ZEIS) que são afetadas, não tem nenhum conselho gestor que tenha sido ouvido sobre isso, há uma sobreposição de políticas habitacionais da União, do município, do Estado. A gente precisa colocar isso em pratos mais limpos. Eu não estou entrando no mérito se [a PPP] é boa ou má. A questão, para mim, é preliminar: não se faz essa política sem participação popular.
E a questão do decreto de desapropriação?
Para mim ficou claro que os 900 imóveis afetados por esse decreto expropriatório não foram vistoriados pelo poder Executivo. Existem interesses econômicos ocultos por trás disso, o que é muito sério. Vou dar o exemplo de uma situação que me chamou muito a atenção. É desapropriado um imóvel na rua São Caetano, esquina com avenida Tiradentes, onde funciona um estabelecimento comercial há muitos anos. No projeto, ele vai ser desapropriado para fazer um outro conjunto comercial embaixo e uma torre em cima. Pergunto: o proprietário foi consultado? Foi perguntado se ele não queria aderir à PPP para permitir a edificação em cima e ele ficar com a área de baixo? Faltou critério. Isso, inclusive, foi confessado pelo Sílvio Torres (Secretário Estadual de Habitação) numa audiência pública na Assembleia Legislativa.
O Estado pode desapropriar terras do município?
Toda a base territorial do Estado é sobre municípios. Se o Estado quer fazer uma obra do metrô, ele desapropria terras da cidade. O que o Estado não pode é desapropriar um bem pertencente ao município, não pode desapropriar um prédio público que pertença ao município ou à União.
Como deveria ser essa política pública de habitação?
Eu quero aproveitar essa oportunidade da decisão judicial e ver como a gente pode caminhar em um acordo para construir essa política pública. Eu não tenho clareza de como ela deve ser desenvolvida, eu não tenho essa receita. Acho que o Executivo também não tem e não aceito que o Urbem dê esta receita. Isso tem que ser construído com os diversos interesses sociais que estão aí postos à disposição. Em primeiro lugar, teria que haver um mapeamento para as áreas que estão livres na cidade antes de se pensar em desapropriação de áreas que estão ocupadas com gente morando ou com renda sendo produzida. Depois, estabelecer um critério qualitativo e quantitativo para ter uma política consistente de formação de bairros. Isso envolveria uma articulação de políticas públicas entre Estado e município que eu ainda não vi. Eu tenho visto uma competição de quem constrói uma casa em menos tempo, seja lá a que custo social e urbanístico isso se dê. Isso é nocivo.
Consta no projeto do Urbem, desenvolvido em 2012, que àquela época o atual secretário municipal de Desenvolvimento Urbano, Fernando de Mello Franco, era um dos diretores do instituto. Consta também que Tereza Herling, atual secretária-adjunta da SMDU, atuou como conselheira do projeto do Urbem que venceu a concorrrência. Sendo parte, hoje, do poder público, Mello Franco e Tereza teriam isenção para falar contra o projeto que ajudaram a desenvolver?
Talvez no tempo em que tenha sido feito esse projeto, ele [Fernando de Mello Franco] sequer tivesse expectativa de ser secretário. O que existe ali é um trabalho profissional dele àquela época. Eu não vejo um conflito de interesses. Acho que o que ele precisa é mostrar como se compatibilizam com isso as políticas estadual e municipal, como se faz essa interface. Mas eu não seria leviano de dizer que há um conflito de interesses, mas sem prejuízo de outros entendimentos em sentido contrário.
Reinaldo Iapequino foi questionado sobre se a PPP se assemelhava ao Projeto Nova Luz em relação ao uso do instrumento de concessão urbanística (poder público concede às empresas privadas o poder de desapropriar, construir e lucrar sobre as áreas desapropriadas). Ele disse que não porque a PPP não desapropria lotes, mas apenas propriedades. Um mapeamento feito por moradores das áreas desapropriadas pelo decreto mostrou que diversos imóveis contíguos desapropriados acabam formando lotes…
Na questão da Nova Luz, havia uma desapropriação de 42 quarteirões. O que nós temos [na PPP] são manchas na região central da cidade, são pedaços de diversos bairros. Agora, não é porque não pega um todo, como pegava o Nova Luz, que aquele instrumento concessão urbanística esteja abandonado. Você pode trabalhar de modo difuso, com mini-concessões urbanísticas em função de cada um desses conglomerados da mesma maneira.
Essa outorga do poder público do direito de desapropriar ao setor privado é legal?
É questionável.
É possível, então, questionar o projeto por aí também, pela questão da legalidade dessa outorga?
Olha, a história da legalidade é o último ponto que eu quero discutir. E por quê? As cabeças do Direito são cérebros do mal. O Direito explica qualquer coisa. O Direito explicou a escravidão. O Direito justifica qualquer situação. Você sempre vai encontrar ou vai construir instrumentos jurídicos que permitem cumprir a finalidade que o administrador quer. O Direito é a ferramenta mais perigosa para ser usada aqui. Se não for legal hoje, não quer dizer que não seja legal amanhã ou depois.
Ainda sobre o poder público conceder ao setor privado o poder de desapropriar: Iapequino disse que não há problema nisso porque o que está sendo feito na PPP é uma obra pública. Uma política habitacional pode ser considerada obra pública nos moldes previstos na lei que permite ao poder público conceder ao setor privado o direito de desapropriar?
Veja como a coisa vai na contramão. A licitação do metrô para a linha 6 é uma PPP, e estava previsto no primeiro edital que desapropriações e reassentamentos ficariam a cargo do parceiro privado. Não apareceu nenhum interessado. A primeira coisa que o Estado fez foi chamar aquilo de volta para si. Agora, no novo edital publicado, o Estado é quem assume desapropriação e reassentamento. Ora, isso é para metrô. Me parece que, com mais razão, ele iria fazer isso para habitação. Desapropriação de imóveis para habitação que sejam imóveis residenciais, eu não tenho dúvidas de que é o Estado que deveria fazer isso.
Tanto a Secretaria Estadual de Habitação, quanto a Agência Casa Paulista não divulgaram, até hoje, o projeto urbanístico completo feito pelo Instituto Urbem e nem os modelos jurídico e econômico que serão utilizados nessa PPP. Como o senhor vê isso?
O fato de não haver uma divulgação não me parece correto numa época em que o poder público tem uma obrigação de transparência. Não é possível que exista um segredo de Estado sobre aquilo que afeta a vida de tantas pessoas. E sabemos que tem gente que tem cópia inteirinha disso nas mãos. Setores do mercado imobiliário seguramente estão muito bem informados disso, do que se pretende. Quem não sabe são os fracos na situação.
No começo da conversa o senhor disse que havia interesses comerciais obscuros nesse projeto. Com base no que o senhor afirma isso?
Com base na falta de clareza na apresentação [do projeto]. Não há garantia, por exemplo, de que os polos de comércio existentes serão mantidos como tais. Pode haver induzimento de uma outra tipologia de atividade empresarial que vai se realizar.
Há uma conivência do poder público com o setor privado?
Não acho que conivência seja a palavra. Acho que a coisa está muito mal amarrada dentro do poder público e entre o poder público e a sociedade. Acho que o poder público não tem clareza, tanto que não houve vistoria física dos imóveis que não foram colocados no decreto, ele não tem clareza dos imóveis que está desapropriando. Ele está desapropriando em nome de um interesse que não é dele, ou que não é só dele, ou que em parte não é dele. Acho isso muito perigoso. Isso exige explicação.
Primeira página da liminar concedida por desembargador
Segunda página da liminar concedida por desembargador