*Por Luciana Itikawa, urbanista e pós-doutoranda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP
Ao que parece, esta PPP da Habitação no Centro de São Paulo obedecerá ao mantra do empreendedorismo paulistano: “vamos primeiro bater metas, depois a gente vê a qualidade do produto!”; ou, ainda, do pragmatismo político transpartidário, “é social, ma non troppo: precisa ter o ‘equilíbrio contratual’”. Afirma-se que esta PPP atenderá bandeiras históricas da reforma urbana – habitação social no centro, geração de renda, equipamentos sociais etc. –, mas será que não estamos diante de um cavalo de Tróia?
Contribuições de diversos autores aqui no observaSP têm levantado questões sobre a PPP que estão ainda no vácuo, apesar de alentado edital com detalhamento das atribuições e contrapartidas ao concessionário que vencerá no próximo dia 10 de Dezembro de 2014 a concorrência para esta PPP da Habitação no Centro de São Paulo.
Neste texto procuro problematizar especificamente duas questões: a primeira é a utilização comercial do térreo por parte do concessionário. Trata-se de um dos térreos mais valiosos e cobiçados da cidade. Melhor, é barato: quase a totalidade está em terra pública! Entretanto, na caracterização do térreo que está sendo ofertado neste edital, não há nenhum compromisso de que sua utilização irá incluir não só diversidade econômica e escalas de comércios históricos na região central, como também a heterogeneidade de habitantes que aí moram e trabalham. As menções mais concretas dadas à utilização do térreo são: “pode ter um supermercado, uma padaria”, segundo palavras do próprio subsecretário de Habitação do Governo do Estado, Reinaldo Iapequino, em última reunião do Conselho Municipal de Habitação (CMH).
A segunda diz respeito ao perfil econômico do morador: como esta PPP classifica este morador? Qual sua interface com o déficit habitacional e com o trabalho informal existentes neste tecido urbano do Centro e na região metropolitana de São Paulo?
A utilização comercial do térreo
Em relação a esta primeira questão, é preciso antes entender quais e como são os perímetros apresentados. A versão mais atualizada dos perímetros desta PPP mostra quatro lotes: Lote 01 – Amarelo; Lote 02 – Rosa; Lote 03 – Verde; Lote 04 – Azul. Apesar de serem perímetros não totalmente interligados entre si, possuem quatro características convergentes: 1) localização estratégica, por estarem no Centro Expandido e bem abastecidos de infraestrutura, sobretudo, por ampla malha de transporte coletivo: três linhas de trem – Diamante (oeste), Turquesa (sudeste) e Coral (leste) da CPTM; e uma de metrô – Vermelha (leste-oeste); 2) estão inseridos em três Operações Urbanas (Centro, Lapa-Brás e Móoca-Vila Carioca); 3) possuem eixos de comércio especializado de importância regional e nacional; 4) são terrenos públicos que não atingiram o limite máximo de ocupação do solo, portanto, estão “prontinhos” para a iniciativa privada!
Das quatro características, vale a pena ressaltar as três últimas, uma vez que moradores, comerciantes e urbanistas têm externalizado sistematicamente suas preocupações pela ameaça que esta PPP representa à cidade e às suas vidas. Em primeiro lugar, pelo fato de estes perímetros estarem dentro das operações urbanas mencionadas, terão maciços investimentos públicos no transporte coletivo (mais três estações e uma parte da linha de trem enterrada), novas avenidas e construção de parques lineares.
A iniciativa privada, então, praticamente não vai precisar gastar nada para fazer cidade! Ela tem 20 anos para receber uma cidade que o Poder Público vai construir ao redor do produto habitação que cabe a ela produzir.
No contrato, o edital menciona a possibilidade de ajustes contratuais, dependendo dos riscos que o concessionário estará exposto. Entretanto, de que riscos para a habitação estamos falando, considerando as quatro características urbanas favoráveis mencionadas acima?
É preciso dizer que o primeiro edital da Operação Urbana Lapa-Brás, lançado pela gestão anterior, permitia ainda a oferta pública na Bolsa de Valores dos Certificados de Potencial Adicional Construído (CEPACs), ou seja, a possibilidade de compra do direito adicional de construir no perímetro desta operação urbana, porém valorizado a partir da especulação no mercado financeiro. O “equilíbrio contratual” não faz jus à valorização desse território amplamente infraestruturado fruto da especulação financeira.
Além disso, dos quatro lotes, dois estão em áreas imensamente consolidadas do ponto de vista da pujança e importância dos seus eixos de comércio especializado. Particularmente, os Lotes 02-Rosa e 03–Verde estão localizados em duas áreas do Programa Municipal “Circuito de Compras”: o Brás e o Bom Retiro. As outras duas áreas do Circuito de Compras são a Sé (Rua 25 de Março) e a Santa Efigênia.
Segundo o portal da Prefeitura, o Circuito de Compras atrai 500 mil pessoas que circulam diariamente nestas quatro áreas. A indústria da confecção/vestuário, como parte da indústria de transformação, concentrou-se fortemente na Região Metropolitana de São Paulo, chegando a responder por mais de 40% do valor de transformação industrial deste segmento em 1970. Desde então, é possível verificar um processo de relativa desconcentração regional em razão das deseconomias urbanas e da guerra fiscal entre estados e municípios. No entanto, mesmo no município de São Paulo, a arrecadação em tributos demonstra que este setor chega a ser superior a outros setores importantes, como os de alimentação e eletrônicos.
A pujança deste setor mostra ainda que há uma clara ênfase em privilegiar economicamente alguns estágios da cadeia, onde ficam represados a quase totalidade dos recursos movimentados, em detrimento da ponta, onde é realizado o trabalho informal precário.
De 2008 para cá, inúmeras denúncias sobre a existência de trabalho análogo à escravidão fizeram grandes empresas da confecção/vestuário serem responsabilizadas solidária e subsidiariamente pela precarização do trabalho ao longo da cadeia. Umas das denúncias que mais repercutiram na mídia foi o “resgate” de uma trabalhadora que costurava para uma cadeia multinacional de vestuário, cuja oficina estava localizada no Lote 01- Amarelo. Entretanto, nem todos os trabalhadores domiciliares são subcontratados de empresas, parte deles são autônomos que produzem nas oficinas para venderem diretamente aos clientes nas “feirinhas” e galerias da região.
A realidade do comércio popular no Centro de São Paulo revela, porém, que a precarização do trabalho não está só na produção domiciliar das oficinas de costura: está presente nas ruas desde a venda ambulante até a coleta de resíduos de tecidos presentes nas quatro áreas do Circuito de Compras. Quem anda no Brás e Bom Retiro, facilmente identifica trabalhadores informais costureiros, ambulantes e catadores ligados à cadeia da confecção/vestuário.
Esses trabalhadores informais estão diretamente relacionados com a terra dessa região onde moram e trabalham, seja ocupando o espaço público, seja executando o ofício em seu domicílio. Entretanto, o espaço para o exercício da informalidade é um ônus ao trabalhador informal. Nesse sentido, o valor da terra, a disputa pelo espaço público e privado, a habitabilidade e a posse recaem como custos adicionais aos demais riscos e desproteções sociais a que o trabalhador informal está sujeito. Por esse motivo, os trabalhadores informais sofrem uma dupla segregação: do direito ao trabalho e, simultaneamente, do direito à cidade.
A preocupação na viabilização de uma vasta infraestrutura para a produção, circulação e acumulação capitalistas não é proporcional ao investimento na reprodução, circulação e acumulação da força de trabalho. Questões como tempo livre, mobilidade, moradia, saúde, educação e lazer do trabalhador não estão incluídas com o mesmo peso e rapidez nas agendas do Estado e da sociedade. Ao contrário, o que testemunhamos em São Paulo é um processo de reconversão do uso e ocupação do solo através da combinação entre a ação do Estado e a dos setores financeiro e imobiliário.
Só no Pátio do Pari, no Brás, chegam diariamente 13 mil compradores em ônibus fretados. É neste terreno público da União, com Concessão de Direito Real de Uso (CRDU) por 35 anos à Prefeitura de São Paulo, que está localizada a Feirinha da Madrugada. Este terreno, que era um pátio de manobras de trem, virou um dos maiores entrepostos comerciais do Brasil, do ponto de vista da monumental atração de consumidores de todo o país, da América Latina e até da África. Em 2011, o então prefeito Gilberto Kassab lançou o projeto do “Centro Popular de Compras” que, nas suas cifras, de popular não tinha nada. O atual prefeito Fernando Haddad, em fevereiro deste ano, relançou o mesmo projeto: “Até 2015, vamos manter a feira como está hoje, mas a partir disso ela vai dar lugar a um grande empreendimento do circuito de compras da cidade”. Haddad ainda defende o projeto pela escala e articulação ampla: “É um acordo com o governo federal. Ali está previsto um grande centro de compras, com o mais moderno que tem em termos de equipamentos, habitações de interesse social, estacionamento para ônibus e uma série de benfeitorias”.
Neste “Centro Popular de Compras” impressiona a forma como o Poder Público articulou o capital público e o privado para viabilização de um empreendimento com fachada “popular”, porém com todas as características de um projeto financeiro-imobiliário. A tese ‘investimentos públicos e ganhos privados’ parece aqui também ser regra. O projeto envolve terra pública (da União); financiamento público (BNDES); estudo de viabilidade de empresa privada, a Estruturadora Brasileira de Projetos (EBP), cujos acionistas são os principais bancos privados e públicos; e gestão do empreendimento no formato parceria público-privada (PPP).
O estudo de viabilidade da EBP custou R$8,5 milhões, porém tal cifra parece módica em relação aos números apresentados pelo projeto. O valor total de investimentos estimado do contrato com a empresa vencedora é de R$1,5 bilhão, em 35 anos de vigência. O principal acionista da EBP é o BNDES, financiador do empreendimento. A EBP contratou os mais renomados consultores do cenário corporativo local e internacional para elaboração de estudos de viabilidade. São eles: estudos de viabilidade logística (Logit), jurídica (Sundfeld), urbana (Urban Systems), financeira (Accenture), de comunicação (Burston Marsteller) e digital (DBI).
No Lote 03, apenas um dos lados do trem do terreno da União está incluído na PPP da Habitação, justamente o lado do “Centro Popular de Compras”. No site da Prefeitura, o projeto considera esta mesma metade do terreno para os usos comerciais, hoteleiros, escritórios e não há a menção de habitação social! De equipamentos sociais estariam programadas unidades do Sebrae e do São Paulo Confia. No outro lado, estariam prometidas pela Prefeitura mais habitações sociais fora do projeto da PPP. Esta incompatibilidade na localização da habitação social entre Prefeitura e Estado em um dos terrenos mais disputados do Centro poderia esconder autoria e alvo dos programas habitacionais sociais?
O mais irônico é que, no meu artigo anterior (O Plano Diretor e o Direito à Cidade no Espaço Público), eu comento a participação dos ambulantes nas audiências públicas do Plano Diretor para sua primeira conquista neste documento: “criação de centros comerciais populares em áreas de grande circulação, como terminais de transporte coletivo e estações de metrô e trem”. No Centro Popular de Compras, foram prometidas em torno de 2 mil vagas a ambulantes. Será que esses e os outros trabalhadores informais conseguirão permanecer com sua modesta geração de renda neste território? Caio Santo Amore mostra um extenso debate sobre isso no texto “Quem vai (e quem não vai) morar”.
O perfil do morador da PPP
Quanto à segunda questão que propus, ao atingir a meta de construção de 14.124 unidades habitacionais, sendo 9 mil delas para HIS, a PPP Casa Paulista atenderá 6 faixas de renda, sendo 4 dedicadas àqueles que não podem ter acesso à habitação no mercado imobiliário. Com isso, apresenta uma solução importante em termos de habitação social, certo? Afinal, quem é esse morador que ocupará as unidades habitacionais da PPP, sobretudo, as de HIS?
Para Ermínia Maricato, o nosso modelo de desenvolvimento não conseguiu incluir, mesmo nos seus períodos de maior crescimento econômico, o direito à cidade nem mesmo para a totalidade dos assalariados formais. Se temos trabalhadores formais – operários, pedreiros, etc. – morando em favelas, o que diriam os informais precários? Segundo o Dieese, no estudo “Informalidade atualizada: análise das regiões metropolitanas e Distrito Federal no período de 1999 a 2009”, a região metropolitana continha, em 2009, 49,7% do seu total de ocupados na informalidade.
A primeira constatação de Paula Santoro, em seu artigo “O papel do Estado na PPP da Habitação de São Paulo”, é o descolamento entre o atendimento a uma mera diversidade de faixas de rendas familiares (RF) e o verdadeiro déficit habitacional. Uma vez justificada a promoção do atendimento a variadas rendas como “mistura social”, a PPP não mostra que priorizará as famílias que realmente precisam.
A tabela apresentada no edital sobre as diferentes rendas familiares – RF1 a RF4 para HIS; e RF5 a RF6 para HMP –, além disso, se omite em relação a dois temas muito importantes no debate sobre habitação social no Brasil: a Renda Familiar Zero (RF-0) e o déficit habitacional concentrado nas famílias de 0 a 3 salários mínimos (SM).
A omissão em relação à classificação RF-0 parece um detalhe aparentemente irrisório, mas é fruto de uma constatação fundamental das políticas públicas que direcionaram programas importantes como o Locação Social a famílias que não só não teriam tempo hábil para pagar, em razão de idade mais avançada, por exemplo, mas também pelas características dos seus rendimentos, quando estes não lhes permitem arcar com a integridade do custo da unidade habitacional nos moldes e alternativas de financiamento.
É entre essas pessoas de RF-0 que estaria grande parte dos trabalhadores informais mais frágeis que mencionei anteriormente. O projeto jornalístico Arquitetura da Gentrificação mostra que entre os moradores da Favela do Moinho (Lote 02-Rosa) estão catadores e ambulantes que trabalham na região central e lá querem ficar. Se estes trabalhadores informais estão ameaçados, imagina os segmentos da população em situação de rua e os dependentes químicos neste modelo de “cidade-empresa”…
Em suma, parece que temos uma nova modalidade de projeto social: primeiro, chamamos a iniciativa privada para definir, administrar, especular e comercializar todos os ingredientes da cidade real – voraz e excludente no térreo; discricionária e terceirizada nos pavimentos superiores; para então, depois, o Poder Público contabilizá-lo politicamente como projeto “social” e “popular”.