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A gestão antiperspirante: rumo à pobreza inodora, incolor e insípida

Manifestação de camelôs no bairro da Lapa, zona oeste de São Paulo, após ambulante ser morto por PM. Foto: Oswaldo Corneti/Fotos Públicas

Manifestação de camelôs no bairro da Lapa, zona oeste de São Paulo, após ambulante ser morto por PM. Foto: Oswaldo Corneti/Fotos Públicas

Por Luciana Itikawa* 

“Antiperspirante é a substância que inibe a saída de suor quando aplicada topicamente. De uma maneira simplificada, o antiperspirante impede que o suor surja na pele e se encontre com as bactérias que estão ali e, assim, também evita o mau cheiro. Nesse ponto, ele é completamente diferente do desodorante, que é um produto que não impede a transpiração, mas apenas a liberação do mau cheiro.” (site de empresa de cosméticos)

Em menos de uma semana, dois episódios sobre o comércio ambulante mostram a capacidade mágica de ocultação da pobreza, quando ela teima em aparecer, porém, de forma trágica, com a morte de três ambulantes: um em São Paulo e dois no Rio de Janeiro nesta semana de setembro de 2014.

A morte, com certeza, é o extremo da gestão militarizada de uma questão, entre outras, urbana. Apesar de todo o esforço dos governos em aumentar e complementar seu efetivo repressivo às várias manifestações da pobreza, esses trabalhadores continuarão a expor seus suores, enquanto esta não for um espectro que aparece apenas nas estatísticas.

O comércio ambulante está profundamente ligado à constituição do trabalho livre no Brasil e à permanência sistemática de trabalhadores à margem do mercado formal de trabalho, malgrado um dos maiores índices de formalização de carteiras profissionais da história recente.

Por que, então, os ambulantes “teimam” em aparecer e desafiar esses policiais armados nas grandes cidades? Por que eles ainda estão trabalhando apesar do prefeito paulistano anterior ter proibido todas as licenças na cidade em 2012? Por que eles são permitidos em alguns locais e em outros não?

Aqui vão algumas ponderações:

Em primeiro lugar, por que, então, eles insistem em desafiar o Estado trabalhando sem licença? Existem 138 mil ambulantes no município e 158 mil na região metropolitana de São Paulo segundo o DIEESE em 2010, apesar do atual número irrisório de licenças na cidade (1.940) representando apenas 1,4% do total de trabalhadores no município. Os outros cerca de 136.000 trabalhadores, portanto, são obrigados a correr diariamente para fugir da fiscalização. O ambulante morto na Lapa, Carlos Augusto Muniz de Souza, de 30 anos, era um deles. Ele havia prometido à esposa na noite anterior: “Não vamos mais correr da polícia”. Não deu tempo, esta morte faz parte da manutenção da ocultação da pobreza através da interface armada do Estado. A Operação Delegada atua na superfície visível da ponta do iceberg daqueles que estão à margem, simultaneamente, do direito ao trabalho, direito à cidade, direito à proteção social, etc. Vide a violenta reintegração de posse de um imóvel realizada pela polícia militar ocorrida pouco dias antes no Centro de São Paulo.

Em segundo, por que ainda permanece o limbo jurídico sobre a regulamentação das licenças deles? O prefeito anterior proibiu todas as licenças, e mesmo aqueles 1.940 que ainda as teriam enfrentam o constrangimento de trabalhar há 2 anos por força de uma liminar da Justiça cuja fundamentação foi calcada no direito à cidade. A Ação Civil Pública movida pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e pelo Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos ainda precisa ser julgada para que o impasse institucional entre Prefeitura e Justiça se resolva. Apesar da tentativa dos trabalhadores e da sociedade civil ter instituído no ano passado um canal de diálogo quinzenal com a Prefeitura por 6 meses para resolver politicamente, nada avançou para a resolução do problema.

Em terceiro, por que o abismo entre o número de licenças e o número total de ambulantes que trabalham por toda a cidade? Quem frequenta todo dia os terminais intermodais espalhados nas periferias para embarcar ou fazer a baldeação às 5-6hs ou 21-22hs já deve ter visto algumas dezenas de ambulantes servindo a imensa população que se desloca entre casa-trabalho. Isso não seria novidade para ninguém se não tivéssemos a dimensão de que quase um estado de Sergipe inteiro (1,9 milhão) se movimenta todos os dias de um lado pro outro na região metropolitana, segundo o estudo A Mobilidade pendular na Macrometrópole paulista. Este estudo mostra que apesar do crescimento da população da região metropolitana ter estacionado, seus movimentos pendulares quase duplicaram (de 1,1 milhão em 2000 para 1,9 milhões em 2010). Esses espaços de conexões de transporte passaram a ser territórios de comércio e serviços a essa imensa população itinerante, apesar das leis e secretarias de transporte subestimarem este fato.

Por este motivo, os trabalhadores ambulantes em 2013 se organizaram e conseguiram incluir pela primeira vez em um Plano Diretor do município de São Paulo, a necessidade desse comércio atender esse imenso fluxo de pessoas pelo território. Este coletivo de trabalhadores, chamado de Fórum dos Ambulantes, se organizou em 2012 para participar das audiências públicas do Plano Direto e encaminhou três propostas, apesar de apenas uma ter sido incorporada: “criação de centros comerciais populares em áreas de grande circulação, como terminais de transporte coletivo e estações de metrô e trem” (pag. 10– Centralidades Polares e Lineares).

Em quarto lugar, por que eles são permitidos em alguns locais e em outros não? Existe apenas um tipo de licença no espaço público, a “permissão de uso”, que é dirigida aos artesãos, jornaleiros, ambulantes, food trucks e até parklets.  Por se tratar de ocupação em logradouros públicos, a permissão tem que ser precária e sem segurança na posse, ou seja, pode ser retirada unilateralmente pelo Poder Público. Entretanto, por que a vista grossa em alguns locais e a intolerância em outros? O comércio ambulante faz parte das inúmeras manifestações de pobreza que têm sido exterminadas dos espaços públicos e privados das áreas em valorização quando estes ameaçam os interesses imobiliários. A desculpa é quase sempre a execução de obras de infraestrutura, transporte, etc., mesmo quando aquilo que ocupar o lugar seja o mesmo tipo de atividade, porém, mais elitizado. Esse é, por exemplo, o caso dos food trucks, que conseguiram 900 licenças no município; ou das empresas de bebidas durante a Copa, que conseguiram o direito de ocupar todo o Vale do Anhangabaú para comercializar com exclusividade seus produtos.

Os trabalhadores ambulantes da cidade real não são um fato isolado a ser vencido por força da cidade legal. As manifestações de pobreza irão sempre desafiar as gestões que ainda creem governar pela pobreza, contanto que elas não tenham cheiro, nem cor e nem gosto.

* Luciana Itikawa é arquiteta e urbanista

Poder público e empresas privadas: pagamento de propina é via de mão dupla

Ministério Público anuncia prisão de quatro auditores da gestão Kassab acusados de cobrar propina para legalizar empreendimentos imobiliários. Tão importante quanto investigar suas relações com as empresas, é conhecer as conexões destas com outros gestores e obras públicas

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP) anunciou na quarta-feira, 30 de outubro, a prisão, pela Polícia Civil, de quatro ex-funcionários públicos ligados à Subsecretaria da Receita da Prefeitura de São Paulo durante a gestão de Gilberto Kassab (PSD). Segundo investigação levada a cabo também pela Controladoria Geral do Município (CGM), eles são acusados de fazer parte de um esquema de corrupção que condicionava a liberação do Habite-se ao pagamento de propina pelo empreendedor imobiliário. O Habite-se é um documento emitido pela prefeitura garantindo que a construção foi concluída dentro das normas legais exigidas. Um fator imprescindível para a emissão do documento é o pagamento, pelo empreendedor, do ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza) calculado sobre o custo total da obra. Foi nessa cobrança que os acusados armaram o esquema.

Segundo Ministério Público, esta pousada em Visconde de Mauá (RJ), pertence a um dos acusados de corrupção. Foto: Google/Ministério Público

Segundo Ministério Público, esta pousada em Visconde de Mauá (RJ) pertence a um dos acusados de corrupção. Foto: Google/Ministério Público

Segundo o Ministério Público, os auditores fiscais emitiam aos empreendedores guias com valores irrisórios de recolhimento de ISS. Depois, cobravam destes propinas de alto valor a serem depositadas em suas contas bancárias. Se o empresário não pagasse o montante pedido, não recebia o Habite-se. “Uma grande empresa empreendedora recolheu, a título de ISS, uma guia no valor de R$ 17,9 mil e, no dia seguinte, depositou R$ 630 mil na conta da empresa de titularidade de um dos auditores fiscais. O valor da propina corresponde a 35 vezes o montante que entrou nos cofres públicos”, exemplificou o Ministério Público em nota divulgada em 30 de outubro. O foco dos auditores, segundo as investigações, eram prédios residenciais e comerciais de alto padrão, cujo custo de construção passava dos R$ 50 milhões. O esquema gerou prejuízo de pelo menos R$ 200 milhões aos cofres públicos, de acordo com o MP.

Um dos ex-funcionários presos é dono de um apartamento duplex neste edifício de luxo em Juiz de Fora (MG), segundo apurou o MP. Foto: Google/Ministério Público

Um dos ex-funcionários presos é dono de um apartamento duplex neste edifício de luxo em Juiz de Fora (MG), segundo apurou o MP. Foto: Google/Ministério Público

Mas quem pagou a propina?

Uma das coisas que mais chamou a atenção na nota do Ministério Público foi a não abertura dos nomes das empresas do setor imobiliário que pagaram propina. No caso dos auditores presos, foram publicadas as iniciais dos seus nomes, cargo ocupado e ano de exoneração. Com esses dados, foi tarefa simples cruzar informações e chegar ao nome completo de cada um deles.

Na edição desta sexta-feira, 1º de novembro, o jornal “O Estado de S. Paulo” publicou reportagem revelando os nomes de pelo menos cinco empresas envolvidas no esquema: as incorporadoras Trisul, BKO, Tarjab, Alimonti e Brookfield.

Tão importante quanto investigar as relações dos ex-funcionários com as empresas é conhecer as conexões destas empresas com outros gestores públicos.

A partir dessas informações, outras questões surgirão, e o conjunto de respostas a cada uma delas talvez seja capaz de revelar acordos entre poder público e capital imobiliário ainda mais antigos e profundos do que o revelado pelo MP. Considerando que em algum momento os nomes de todas as empresas envolvidas serão divulgados ao público, há pelo menos quatro perguntas cruciais a serem feitas: essas empresas fizeram doação à campanha de algum político? Se sim, a qual/quais? Em qual ou quais eleições? As empresas estão ou estiveram envolvidas em alguma obra pública?

Doação de campanha é investimento

Em reportagem publicada em setembro no projeto Arquitetura da Gentrificação (AG), da Repórter Brasil, a apuração revelou, por meio de análise e cruzamento de dados, que empreiteiras, incorporadoras e construtoras foram responsáveis por mais de 57% das doações feitas só aos diretórios nacionais de partidos que elegeram os vereadores da capital paulista. Há ainda doações dessas empresas aos diretórios estaduais, municipais, aos comitês de campanha e aos próprios candidatos. Quase todos os vereadores que venceram o pleito de 2012 na capital paulista receberam, direta ou indiretamente, verbas de empresas do setor imobiliário. Segundo o juiz Márlon Reis, um dos idealizadores da Lei Ficha Limpa, dentro de um universo de milhares de empresas potencialmente doadoras pertencentes aos mais diversos segmentos, ter doações maciças vindas de poucas companhias não demonstra outra coisa senão o interesse na “troca de benefícios indevidos” entre políticos e agentes do setor privado. Já nas palavras do ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Torquato Jardim, as doações, muitas vezes, são “investimentos”. “Se o candidato ganhar a eleição, o doador ganha contratos”, afirmou Jardim.

Infográfico produzido pelo Arquitetura da Gentrificação mostra como doações de campanha feitas por empreiteiras influenciaram as políticas públicas de urbanização da cidade

Infográfico produzido pelo Arquitetura da Gentrificação mostra como doações de campanha feitas por empreiteiras influenciaram as políticas públicas de urbanização da cidade durante a gestão de José Serra (PSDB) e seu sucessor Gilberto Kassab (PSD)

O (anti) exemplo de Serra e Kassab

Durante os mandatos de José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD) na Prefeitura de São Paulo (2005-2012), ficou clara a relação de “pagamento do investimento” feito por meio de contratos de obras milionárias – alguns deles fraudulentos – que impactaram e impactam até hoje a cidade e seus moradores, especialmente os que viviam em favelas e foram expulsos de suas casas, de maneira violenta, para que ali brotassem novas torres comerciais, residenciais, avenidas e viadutos questionáveis do ponto de vista do planejamento urbano.

Em entrevista em vídeo a ser publicada em breve no site do Arquitetura da Gentrificação, a urbanista Ermínia Maricato fala sobre o casamento de interesses entre o capital imobiliário, a indústria automotiva e o poder público que afronta leis para dar vazão à gana construtiva com fins meramente rentistas, e que está levando as cidades a um abismo de muitos níveis de profundidade: do aumento abusivo do preço da terra e do custo de vida à verticalização irracional dos bairros, do caos da mobilidade à expulsão violenta da população de menor renda das regiões centrais da cidade.

Diante desse cenário, é possível dizer que o processo de gentrificação contemporâneo que ocorre na capital paulista tem parte das suas raízes nas doações de campanha maciças feitas por empreiteiras aos gestores, e “pagas” por estes, depois de eleitos, por meio de contratos de obras que, em vez de revigorarem a cidade, a mortificam juntamente com seus moradores.

O caixa 2 da relação

A rede de corrupção que o MP revelou na última quarta-feira é, de alguma forma, o “caixa 2” das relações questionáveis entre poder público e empresas do setor imobiliário, e que não é “privilégio” de nenhum partido ou gestão. Considerando que o caixa 1, ou seja, as doações de campanha feitas dentro da lei, já são bastante daninhas, o potencial destrutivo das propinas é ainda maior. Se é possível comprar um Habite-se, é possível também, dentro da mesma lógica do crime, comprar alvarás, licenças, laudos técnicos e outros documentos que podem evitar – ou precipitar – tragédias urbanas.

Por isso é essencial aprofundar a apuração nas redes de relações dessas empresas com gestores públicos, a começar por aqueles a quem, por ventura, tenham feito doação de campanha, seja em administrações anteriores ou na atual.

Segundo a nota do Ministério Público, o órgão “investiga se as empresas foram vítimas de concussão, porque não teriam outra opção para obter o certificado de quitação do ISS”. Toda investigação é necessária. Mas independentemente do nível de participação no esquema que essas companhias tenham tido, é importante nunca perder de vista que no cenário de mentiras e ilegalidades em que atuam os corruptos do poder público, a manutenção desse tipo de crime só é possível porque há a figura do corruptor do setor privado que aceita a oferta.

Dilma sanciona lei que garante ao setor privado o poder de desapropriar e lucrar em obras de urbanização

A presidente Dilma Rousseff sancionou ontem, 24/10, a lei 12873, que trata “de obras e serviços de engenharia relacionados à modernização, construção, ampliação ou reforma de armazéns destinados às atividades de guarda e conservação de produtos agropecuários”.

Como explicou a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik em artigo sobre o tema, o texto da lei ganhou uma série de “penduricalhos”, entre eles, uma alteração estratégica do artigo 4º do Decreto-Lei 3365, de 1941, que trata das desapropriações por utilidade pública.

A alteração do artigo 4º do Decreto-Lei, sancionada ontem por Dilma, diz o seguinte: “Quando a desapropriação destinar-se à urbanização ou à reurbanização realizada mediante concessão ou parceria público-privada, o edital de licitação poderá prever que a receita decorrente da revenda ou utilização imobiliária integre projeto associado por conta e risco do concessionário, garantido ao poder concedente no mínimo o ressarcimento dos desembolsos com indenizações, quando estas ficarem sob sua responsabilidade.”

Nas palavras de Rolnik, “isso vai permitir que uma empresa privada que ganhe uma concessão para reurbanizar um bairro numa cidade qualquer – Botafogo, no Rio de Janeiro, por exemplo –, possa não apenas realizar as obras, como já acontece hoje, mas também tornar-se dona do bairro inteiro, pois também poderá desapropriar para depois investir em megaempreendimentos imobiliários naquele território”.

Ou seja: este Cavalo de Tróia colocado no meio de lei que trata de “reforma de armazéns” permitirá que o poder público turbine suas parcerias com as empreiteiras, entregando bairros inteiros (a cidade, no fim das contas) aos interesses do mercado imobiliário, com o respaldo da lei e em nível nacional.

Aqui em São Paulo, Gilberto Kassab abriu o precedente para esse tipo de operação com o Projeto Nova Luz. O projeto utilizava o controverso instrumento chamado “concessão urbanística”, no qual o poder público concede ao privado o poder de desapropriar e lucrar sobre a área desapropriada. O Nova Luz foi “engavetado” pelo prefeito Fernando Haddad, mas reapareceu ampliado – e agora turbinado – com a PPP de Habitação do Centro, um projeto de R$ 4,6 bilhões para a construção de 20 mil moradias na região central da cidade e que já teve decreto de desapropriação publicado pelo governador Geraldo Alckmin com o endereço de mais de 900 imóveis que serão desapropriados. Em mapeamento feito por moradores, a maioria dos imóveis são residências, comércios e indústrias ocupados e consolidados há décadas, ao contrário do que dizem os gestores da PPP, de que seriam imóveis vazios ou sub-utilizados.

Se para os cidadãos e a cidade esta alteração incluída na lei aprovada ontem por Dilma representa uma porta aberta para a interferência daninha e agressiva do mercado imobiliário nas políticas públicas de habitação e urbanização da cidade, para os gestores públicos – prefeitos, governadores e vereadores -, que têm suas campanhas financiadas por empreiteiras, será mais uma forma eficiente de pagar, com o corpo da cidade, as dívidas contraídas durante as eleições junto ao mercado imobiliário.