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Terceirização e o rapto do território do trabalho

Resgate de trabalhadoras e trabalhadores em situação análoga à escravidão, em 2014, de uma oficina de costura em Itaquaquecetuba (SP). Foto: Sabrina Duran

Resgate de trabalhadoras e trabalhadores em situação análoga à escravidão, em 2014, de uma oficina de costura em Itaquaquecetuba (SP). Foto: Sabrina Duran

*Por Luciana Itikawa, pós-doutoranda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP

Passados 515 anos do descobrimento do Brasil e 128 anos da Abolição da Escravatura, TERRA e TRABALHO continuam sendo o “escape” do nosso desenvolvimento. Formas contemporâneas de escravidão e a concentração da terra rurais e urbanas persistem, apesar das afirmações de Kátia Abreu sobre inexistência de latifúndio; e de Armando Monteiro, sobre a modernização das relações de trabalho com a terceirização.

MST, CUT, MTST e PSOL irão para as ruas hoje, 15/4, em paralização nacional para protestar, entre outras pautas, contra a Lei da Terceirização. Para os movimentos, é impossível dissociar a luta para o acesso à terra da luta pelos direitos no trabalho, ambas no campo e na cidade.

Não é novidade que o nó do nosso desenvolvimento é a desigualdade no acesso à terra e aos direitos no trabalho. Nossa história em períodos autoritários ou democráticos já comprovou que o crescimento com concentração da renda e da terra é como voo de galinha: tem o glamour resplandecente das alturas, mas esbarra na inexorável lei da gravidade. O deslumbramento com a maior taxa recente do PIB a quase 8% foi o nosso mais alto limite puxado para baixo com a ausência das necessárias reformas política, tributária, agrária e urbana.

A terceirização não é a única face precária do trabalho

É fato que essa Lei da Terceirização diminuirá e até extinguirá a quantidade de trabalhadores vinculados diretamente às empresas, terceirizados para diminuição dos custos do trabalho. É verdade também que a terceirização acarreta pior remuneração, aumento na rotatividade, superexploração (precarização na jornada de trabalho, calote ou captura dos direitos, adoecimento e maior número de acidentes de trabalho, etc.). Além disso, outros efeitos colaterais têm sido extensamente comprovados: abre espaço para relações promíscuas entre as instituições públicas e empresas que disputarão os contratos de prestação de serviços agravando, consequentemente, a corrupção. A piora na quantidade e na qualidade da sindicalização também enfraquece o poder dos trabalhadores na reivindicação e garantia dos direitos.

A terceirização, entretanto, não é apenas o avesso da formalidade: envolve diversas geometrias de relações de trabalho para além da subordinação trabalhista direta. A heterogeneidade é a característica principal dos mercados de trabalho não só do Brasil como dos países da América Latina, com a marcante presença do chamado trabalho independente (conta-própria, pequenos empregadores e profissionais universitários autônomos). Nesse grupo há uma grande diversidade de perfis ocupacionais.

São inúmeras as estratégias para a redução dos custos do trabalho produzindo ilegalidades e mascarando relações de subordinação por meio do empreendedorismo individual, subcontratação ilegal e terceirização. Apesar do intenso crescimento da formalização do mercado de trabalho, paralelamente cresceu também o chamado emprego subcontratado e o emprego ilegal (assalariado sem registro). Segundo o DIEESE, a subcontratação apresentou um crescimento de 138%; e, em relação aos autônomos que trabalham para uma empresa, o crescimento foi de 61,1% nos últimos 10 anos.

Com a terceirização, não vão faltar argumentos defendendo o empreendedorismo com a aparência virtuosa de “independência” dos trabalhadores e manifestação de modernidade. O binômio empreendedorismo-terceirização como tábua de salvação esconderia a participação seletiva no desenvolvimento através da articulação da precarização das condições de trabalho com as antigas formas de subordinação e submissão. Podem escrever: daqui pra frente não vão faltar projetos de “geração de renda” e suas variantes: microempreendedorismo, capacitação para o negócio autônomo, microcrédito, etc.

Como disse essa semana um empreendedor da economia criativa, “empreender não é pra qualquer um”. Não é mesmo! A desigual capacidade de estabelecer os termos de troca tem como exemplos, no caso do trabalho terceirizado da confecção, a imposição dos valores das peças a serem costuradas, dos prazos de entrega às condições de pagamento. A Repórter Brasil tem mostrado o extremo do lado da terceirização, através das formas contemporâneas de escravidão no campo e na cidade. Segundo Ministério do Trabalho e Emprego, entre 2010 e 2014, cerca de 90% dos trabalhadores resgatados nos dez maiores flagrantes de trabalho escravo contemporâneo eram terceirizados.

Enxugamento do custo do trabalho na cadeia, nomeado como “reestruturação produtiva”, convive, por exemplo, com a ausência dos instrumentos de negociação coletiva e com o racionamento da cidadania. Nesse sentido, com a manutenção sistemática da assimetria de poder econômico e decisório entre trabalhadores e empresas, mesmo com a institucionalidade da autonomia laboral e da terceirização ainda perpetuarão as contradições entre uma face “modernizante” convivendo com o “atraso” das relações de trabalho.

A terceirização é também a exclusão do acesso à terra

Por que, então, a Lei da Terceirização, além da captura dos direitos dos trabalhadores é também a captura do território do trabalho?

A formação peculiar do mercado de trabalho no Brasil não está desassociada da estrutura fundiária que mantêm sistematicamente considerável parcela da população no Brasil à margem do acesso à terra e ao emprego formais. A nossa história demonstra que o acesso precário à terra e à moradia fizeram parte do expediente de rebaixamento dos custos da mão-de-obra na periferia do capitalismo.

O modelo núcleo-periferia caracterizado pela distância geográfica e social entre as classes ainda organiza os espaços metropolitanos e rurais, mesmo com o surgimento de novas configurações espaciais, como o agronegócio, os condomínios fechados da classe alta, a presença das favelas no centro expandido, bem como uma certa desconcentração das unidades produtivas no país. O precário informal, assalariado ou terceirizado em favela ou lona preta na periferia compuseram e continuarão compondo as paisagens urbanas e rurais brasileiras.

Outro aspecto importante da manutenção da exclusão do acesso à terra são os constantes despejos e desapropriações dos espaços públicos e privados, sejam eles diretos ou indiretos, de autoria do Estado ou do mercado. As diretas têm nome e sobrenome: vão desde as intervenções urbanas higienistas do período varguista passando pelos períodos militar e democráticos; até as expulsões indiretas, com a explosão do preço dos aluguéis e terrenos.

Nesse sentido, o processo brasileiro de urbanização acelerada e desigual, ao invés de eliminar a herança do atraso, reproduziu-o e deu-lhe conformações de ilegalidade estrutural e baixíssima qualidade urbanística. A opção pela combinação loteamento clandestino-ônibus-periferia em áreas de risco e proteção ambiental atravessaria incólume todo o século XX e continua seguramente no século XXI. Tal padrão atingiria toda a gama de ocupados precários diretos e terceirizados daqueles cujos rendimentos não permitem o acesso à terra legal e bem localizada.

Além disso, a terceirização contribui para a externalização das atividades para além do chão da fábrica e da empresa, em estabelecimentos dos terceirizados incluindo até o domicílio dos mesmos. Nesse sentido, a tal reestruturação produtiva é também reestruturação urbana, na medida em que produz efeitos sobre a intensidade e a geometria dos deslocamentos metropolitanos. Segundo o estudo da UNICAMP, “A Mobilidade pendular na Macrometrópole Paulista”, quase um estado de Sergipe inteiro se movimenta todos os dias de um lado pro outro. Este estudo mostra que apesar do crescimento da população da região metropolitana de São Paulo ter estacionado, seus movimentos pendulares quase duplicaram (de 1,1 milhão em 2000 para 1,9 milhões em 2010). Essas mudanças, portanto, não rompem com a lógica da segregação socioespacial e da expansão urbana predatória em direção às periferias.

Se trabalhador sem direitos morando em favela, pegando trânsito ou passando 4 horas por dia no coletivo lotado significarem modernização, então estamos falando a partir da perspectiva de qual século?