As forças que disputam o centro
Em entrevista ao Arquitetura da Gentrificação, a urbanista Ermínia Maricato fala, entre outros assuntos, sobre a disputa histórica pelo centro de São Paulo e as estratégias do mercado e do poder público para erguerem uma cidade para as elites
Por Sabrina Duran
O centro de São Paulo está sob disputa e não é de hoje. Faz décadas, diz a urbanista Ermínia Maricato, professora titular aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “Todo governo, desde o Faria Lima, faz um plano que prevê que tem de ter moradia popular no centro”, informa, referindo-se ao ex-prefeito de São Paulo José Vicente de Faria Lima, que assumiu a administração da cidade entre 1965 e 1969.
De um lado da disputa estão os habitantes da metrópole, especialmente os de baixa renda, que querem fixar residência na área central porque lá encontram as principais virtudes de toda cidade: entroncamento de todos os meios de transporte público – metrô, trem e ônibus –, abundância de emprego (20% dos empregos formais da capital paulista, por exemplo), estrutura de comércio, serviços, equipamentos culturais, hospitais, escolas, universidades e, facilitando o acesso a tudo isso, a diversidade de rendas que torna o Centro um dos lugares mais democráticos da cidade.
Do outro lado da corda aparecem dois agentes. O poder público, com seus planos urbanísticos, e o mercado imobiliário, que os orienta segundo seus interesses por meio de um lobby poderoso: o financiamento maciço de campanhas políticas (leia a reportagem “Doações de campanha e a cultura do segredo”).
A última vez que essa disputa histórica esteve prestes a ser decidida por um dos lados foi em 2012, quando o ex-prefeito Gilberto Kassab (então DEM, atual PSD) quase conseguiu levar adiante o Projeto Nova Luz, herança de seu antecessor, José Serra (PSDB). O projeto previa a concessão de 45 quadras na região da Luz e Santa Ifigênia a empresas privadas para que estas desapropriassem a área e construíssem sobre ela, beneficiando-se, consequentemente, com as altas taxas de lucro dessa operação. A população local reagiu e barrou o plano com uma ação civil pública ancorada no argumento da falta de participação popular na elaboração e execução do projeto.
Em 2013 a disputa segue, mas agora com outra cara e outro nome: parceria público-privada, ou “PPP de habitação do Centro”. Trata-se de um projeto da Agência Casa Paulista, do Governo Estadual, em parceria com a Prefeitura e empresas privadas, para construir no centro da cidade 20.221 unidades habitacionais de interesse social, ou seja, para pessoas de baixa renda.
O porém, segundo urbanistas, defensores públicos e movimentos sociais que assinaram uma manifesto sobre a PPP, é que do total de moradias, apenas 6.560 unidades estão destinadas a famílias que recebem de 1 a 3 salários mínimos – mais de 80% do déficit habitacional do país concentra-se em famílias nessa faixa de renda. As demais unidades estão reservadas a famílias que ganham de 4 até 10 salários mínimos.
Para quem não tem qualquer receita ou renda inferior a um salário, como pessoas em situação de rua, não há moradia prevista no projeto.
“Não há porque tem o interesse das operadoras”, enfatiza Ermínia Maricato, referindo-se às empresas privadas que serão os atores principais nesse plano do governo paulista.
A urbanista concedeu uma longa entrevista ao Arquitetura da Gentrificação, na qual falou sobre reforma fundiária, movimentos sociais, aplicação seletiva de leis e desafios na construção de políticas públicas de habitação e mobilidade que beneficiem a classe trabalhadora.
Neste primeiro vídeo, Ermínia Maricato fala da disputa histórica pelo centro de São Paulo, das estratégias do mercado e do poder público para erguerem uma cidade para as elites e de um antídoto possível contra o processo de gentrificação que acaba “higienizando” bairros inteiros onde são feitas intervenções urbanísticas.
Ermínia já foi secretária executiva do Ministério das Cidades (2002-2005), secretária municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano durante o governo de Luiza Erundina (1989-1992) e conselheira do Habitat, programa da Organização das Nações Unidas (ONU) para assentamentos humanos. Já tendo passado pela esfera institucional, hoje ela afirma que a disputa pelo espaço público se dá no chão da própria cidade, onde se desenrola uma autêntica luta de classes.