Limpeza – Arquitetura da Gentrificação https://gentrificacao.reporterbrasil.org.br Só mais um site WordPress Fri, 22 Aug 2014 16:33:29 +0000 pt-BR hourly 1 Privatização da Rua, a nova fase do Arquitetura da Gentrificação https://gentrificacao.reporterbrasil.org.br/privatizacao-da-rua-a-nova-fase-do-arquitetura-da-gentrificacao/ Fri, 22 Aug 2014 16:21:22 +0000 https://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/?p=689 Clique aqui se não for redirecionado automaticamente para a página da nova fase do Arquitetura da Gentrificação.

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Moradores da Favela do Moinho denunciam excessos da polícia https://gentrificacao.reporterbrasil.org.br/moradores-da-favela-do-moinho-denunciam-excessos-da-policia/ Wed, 26 Feb 2014 18:18:33 +0000 https://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/?p=652 Por Fabrício Muriana e Sabrina Duran

Chegamos à Favela do Moinho por volta de 19 horas da terça-feira, dia 25. O protesto já havia acabado, mas ainda era forte o cheiro do gás lacrimogêneo e seus efeitos irritantes nos olhos e garganta. A cerca de 50 metros da entrada da favela, uma mulher de cerca de 30 anos convulsionava no chão. Moradores tentavam colocá-la dentro de um carro da imprensa emprestado para levá-la ao hospital. Perguntei a uma senhora o que havia acontecido. “A gente estava na linha do trem e a polícia jogou uma bomba de gás que pegou em nós duas. Ela passou mal”, ela disse. Para quem não sabe, a linha do trem passa por dentro do Moinho, e cruzá-la é obrigatório para quem quer entrar ou sair da favela.

moinho

Às 19 horas policiais da Força Tática, a tropa de choque da Polícia Militar de São Paulo, ainda estavam posicionados, armas em punho, na esquina da avenida Rio Branco com a rua Doutor Elias Chaves. A bomba que atingiu as duas mulheres estava entre as que foram utilizadas pela tropa para conter a manifestação momentos antes. Outras bombas e balas de borracha foram disparadas contras os moradores, dentro e fora da favela. O protestou durou pouco. Bombeiros foram chamados para apagar o fogo de colchões e outros objetos que bloqueavam a avenida e os manifestantes foram dispersados pelo choque.

A manifestação foi uma reação a mais uma intervenção policial na Favela do Moinho. Segundo os moradores, dessa vez policiais civis da 3ª Delegacia do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) à paisana invadiram a favela em pelo menos dois carros, um cinza e um preto, atirando à esmo com arma de fogo. Eles contam que barracos com famílias foram invadidos, houve corre-corre e ameaças. O episódio aconteceu no fim da tarde, por volta de 17h30, horário de saída escolar, em que muitas crianças voltavam para casa, o que provocou indignação na comunidade. Moradores reagiram atirando pedras em um dos carros, o preto, que precisou recuar. Reforços foram chamados e, de acordo com a assessoria de imprensa do Denarc, foram para o local policiais civis do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra), do Grupo de Operações Especiais (GOE) e até o helicóptero Pelicano da Polícia Civil. Mais tarde, quando os moradores saíram da favela e bloquearam a avenida para chamar a atenção para o que acontecia, foi a vez de a Polícia Militar atuar.

A operação que mobilizou quatro equipes diferentes da Polícia Civil resultou na apreensão de um adolescente. De acordo com o Denarc, a invasão da favela tinha como objetivo combate ao tráfico e foram apreendidos papelotes de cocaína e pedras de craque. A polícia nega que tenham ocorrido excessos e afirma que os policiais foram agredidos por moradores durante a operação e, por isso, precisaram chamar reforços. Diversos moradores ouvidos pela reportagem, além de reclamarem de excesso de violência policial, relataram terem presenciado disparos aleatórios e ameaças dos policiais. Como provas dos excessos, recolheram no interior da favela cápsulas de bombas de gás e projéteis de pistola .40. Fotos indicam que as bombas de gás utilizadas estavam com a validade vencida ou raspada, o que, em determinadas circunstâncias, pode causar queimaduras graves na pele, olhos e mucosas. Em junho do ano passado, o uso de bombas de gás com validade vencida já havia sido registrado em outro caso pela Repórter Brasil.

Ao reclamarem de abusos, moradores entrevistados afirmaram que, ao levarem o adolescente, os policiais disseram aos presentes que “dariam um sumiço nele”. A assessoria de imprensa do Denarc diz que a apreensão foi regular e que o adolescente foi encaminhado para a Fundação Casa. Veja a seguir o depoimento de Alessandra Moja, moradora do Moinho há quase duas décadas e que presenciou toda a ação de ontem:

Além de apontarem excessos na ação da polícia, moradores da favela questionam também a operação em si.  A incursão não é episódio isolado. Ao longo de 2013, diferentes episódios de abusos cometidos por policiais à paisana ou fardados na comunidade foram registrados em fotos e vídeos. Violências têm sido reunidas pelos próprios moradores em um mapa desenvolvido dentro do projeto Arquitetura da Gentrificação. Na comunidade, as seguidas ações são consideradas parte de uma estratégia da polícia, chancelada pelo Estado, para intimidar os moradores, gerar medo e desmobilizar a resistência histórica de quem, há quase três décadas, luta para permanecer ali. A Favela do Moinho está localizada em uma das regiões mais valorizadas do centro da cidade, onde há pelo menos três grandes projetos previstos para a área, todos eles de interesse econômico para o Governo do Estado, Prefeitura e para o mercado imobiliário, processo detalhado em reportagem-dossiê publicada em outubro do ano passado.

(Colaborou: Daniel Santini)
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“Vazios Urbanos”: vídeo mostra estratégia usada por Alckmin para desapropriar moradores https://gentrificacao.reporterbrasil.org.br/vazios-urbanos/ Wed, 05 Feb 2014 16:01:46 +0000 https://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/?p=637

Por Sabrina Duran

Em um contexto de avanço do capital imobiliário sobre as cidades e de “democracia direta do capital”, a afirmação, por parte de gestores públicos, de que um imóvel ou terreno é um “vazio urbano”, abandonado ou subutilizado (e que por isso pode ser desapropriado) é, em essência, uma afirmação ideológica. Tão ideológica que sequer faz falta apurar in loco se os imóveis e terrenos em questão estão mesmo vazios ou parcialmente abandonados, sem cumprir sua função social. A palavra passa a criar a realidade, e não o contrário.

Referindo-se à avenida Faria Lima, alvo, no início dos anos 1990, do interesse das empreiteiras e construtoras e de seus parceiros do poder público, o urbanista João Sette Whitaker mostra como o termo “deterioração” foi usado para desclassificar a “natureza popular do Largo da Batata”, histórico comércio de rua naquela região e que foi – está sendo – destruído ao longo da Operação Urbana Faria Lima, ainda não concluída mesmo depois de quase duas décadas de obras pesadas. “[o termo] ‘força uma interpretação negativa daquele espaço, que é considerado ‘deteriorado’ para quem tem outros interesses na área (…) A ideia de ‘requalificar’ e ‘revitalizar’ essa área começou a ser cada vez mais ouvida, apesar da incrível e rica vitalidade que a área já tinha”.

Também forçando interpretações negativas sobre a cidade, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) tentou, por meio de decreto assinado em junho de 2013, desapropriar mais de 900 imóveis e terrenos em bairros do centro da capital paulista para a construção de 20 mil moradias populares – projeto conhecido como PPP de Habitação do Centro. Endossado pelos estudos do Instituto Urbem, empresa responsável pelo projeto urbanístico das 20 mil moradias, o governo alegou que os imóveis e terrenos contidos no decreto eram “vazios urbanos” – o que se provou falso em 86% dos endereços apresentados.

Reportagem do dia 3 de fevereiro desse ano da Rede Brasil Atual (RBA) dá conta de que o governador volta a usar a mesma estratégia de desqualificação ideológica para leiloar dezenas de imóveis nas regiões do Brooklin e Campo Belo, também na capital. A apuração da RBA mostra que a maioria das casas consideradas “vagas e ociosas” pelo governo estão ocupadas por famílias há anos.

Assista acima ao curta-documentário “Vazios Urbanos”, produzido pelo Arquitetura da Gentrificação para mostrar a estratégia do governo Alckmin de expulsar milhares de moradores da região central da cidade e o esforço de resistência dessas pessoas para permanecerem onde sempre estiveram.

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PPP de Habitação: parceria entre governo estadual de SP e capital imobiliário ameaça até classe média https://gentrificacao.reporterbrasil.org.br/ppp-de-habitacao-parceria-entre-governo-estadual-de-sp-e-capital-imobiliario-ameaca-ate-classe-media/ Fri, 06 Dec 2013 18:56:48 +0000 https://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/?p=460 Mapeamento realizado por voluntários revela que desapropriação planejada pela gestão Alckmin para construção de moradias não respeita critério de “vazios urbanos”, como anunciado. Decreto de desapropriação foi revogado, mas moradores ainda temem ser despejados

Por Fabrício Muriana e Sabrina Duran

Nos assentamentos irregulares é assim: quando há ordem de reintegração de posse, quem não sai “por bem” costuma sair pela força da Polícia. Foi dessa forma que aconteceu em 14 de setembro, quando os moradores da ocupação Jardim da União, no bairro Itajaí, Grajaú, extremo sul da cidade de São Paulo, tiveram suas casas destruídas e foram expulsos do terreno sob bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha lançados em mulheres, homens, crianças e idosos pela Tropa de Choque da Polícia Militar. O episódio aconteceu três dias depois de a Secretaria Municipal de Habitação prometer à comunidade que não haveria desocupação da área, que é pública.

Milan e Nilza Weiss: sem aviso do poder público, o casal soube que a casa onde vivem há 25 anos havia sido incluída em decreto de desapropriação assinado pelo governador Geraldo Alckmin

Milan e Nilza Weiss: sem aviso do poder público, o casal soube que a casa onde vivem há 25 anos havia sido incluída em decreto de desapropriação assinado pelo governador Geraldo Alckmin

Em bairro e casa de classe média a polícia ainda não chega com o pé na porta, mas nem por isso a violência do Estado deixa de ser usada quando há interesses do poder público e do capital imobiliário no uso da terra. Nesta reportagem especial, dividida em onze capítulos, o Arquitetura da Gentrificação apresenta e detalha a polêmica Parceria-Público-Privada de Habitação proposta para o Centro de São Paulo, iniciativa que une o governo estadual e o capital imobiliário em um projeto que ameaça milhares de famílias de classe média que vivem na região. Use o menu abaixo para navegar nesta reportagem e consultar os diferentes documentos, arquivos de áudio e vídeo e registros reunidos em mais de cinco meses de apuração.

1 – Vazios urbanos
2 – Mobilização
3 – “Este Natal vocês já não devem passar em casa”
4 – Erro pontual ou “mapeamento aéreo”?
5 – Do caso a caso à resistência organizada
6 – Contra a lei: população sem chance de participar e decidir
7 – Revogação do decreto: um passo atrás para muitos passos à frente depois?
8 – Apêndice 1 – PPP de Habitação: Projeto Nova Luz turbinado?
9 – Apêndice 2 – Entrevista com Felipe Francisco de Souza, arquiteto e urbanista
10 – Apêndice 3 – Entrevista com Simone Gatti, arquiteta e urbanista
11 – Apêndice 4 – Bastidor da reportagem: secretismo e truculência do Estado

1 – Vazios urbanos?
“Eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer comigo”, comentava um morador da região central de São Paulo à saída de audiência pública na Câmara Municipal, em outubro. Sua residência é um dos mais de 900 imóveis de bairros do centro da cidade declarados de interesse social para fins de desapropriação incluídos no decreto 59.273, assinado em 7 de junho de 2013 pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB). Como ele, outros milhares de moradores e comerciantes afetados pelo decreto são de classe média. Pessoas que não imaginavam que, da noite para o dia, poderiam perder suas propriedades. Para o governo do estado, esses imóveis são “vazios urbanos” – espaços vazios ou subutilizados –  mesmo estando em pleno uso há décadas.

Contribuiu para o choque de tais moradores a maneira como foram informados: na maior parte dos casos, proprietários e inquilinos receberam cartas com “ofertas de serviços” de advogados. Eram escritórios de advocacia que tiveram acesso ao decreto por meio do Diário Oficial tentando vender seus serviços. Argumentavam que os moradores precisavam se defender o quanto antes, o que agravou o medo pela iminente perda dos imóveis.

Embora tenha espalhado pânico entre os proprietários, o contato enviesado dos advogados foi o único meio pelo qual souberam sobre o possível destino de suas propriedades. Segundo todos os entrevistados para esta reportagem, o governo do estado não os procurou em nenhum momento para falar sobre as desapropriações, nem antes nem depois da publicação do documento no Diário Oficial.

O decreto 59.273/2013 é parte da chamada Parceria Público-Privada (PPP) de Habitação do Centro, parceria entre os governos estadual e municipal de São Paulo, empreiteiras e governo federal para a construção de 20 mil moradias para pessoas de baixa renda no centro da capital paulista. O projeto está orçado em R$ 4,6 bilhões, dos quais R$ 2,6 bilhões virão da iniciativa privada, R$ 1,6 bilhão do governo do estado em parceria com o programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, e R$ 404 milhões serão aportados pela prefeitura paulistana.

Das 20 mil unidades habitacionais previstas para serem construídas, apenas 2 mil serão destinadas às famílias que recebem até 3 salários mínimos, consideradas de baixíssima renda e que representam cerca de 80% do déficit habitacional do país. As demais unidades são para famílias que recebem de 4 a 16 salários mínimos.

Regiões da cidade onde governo pretende realizar a PPP de Habitação. Imagem/Divulgação

Regiões da cidade onde governo pretende realizar a PPP de Habitação. Imagem/Divulgação

De acordo com representantes da Casa Paulista, agência da Secretaria Estadual de Habitação (Sehab) responsável pela PPP, e do Instituto Urbem, empresa privada vencedora da licitação pública para a elaboração do projeto, as novas moradias seriam construídas nos tais “vazios urbanos”. Ouça abaixo o arquiteto Milton Braga, um dos responsáveis pelo projeto urbanístico da PPP de Habitação:

Um mapeamento feito por moradores das regiões atingidas pelo projeto, no entanto, mostra que dos 950 imóveis mapeados a partir da lista de endereços divulgada pelo decreto, apenas 85 estavam vazios ou aparentemente abandonados, 36 são moradias precárias (pensões e cortiços) e 48 são imóveis de uso indeterminado ou que não foram encontrados. Segundo esse mapeamento, 86% dos imóveis listados para desapropriação estão ocupados. Clique nas imagens para ver detalhes:

Não apenas o decreto de desapropriação em si foi criticado pela sociedade, mas também a maneira como seria executado. Segundo o subsecretário da Casa Paulista, Reinaldo Iapequino, o Estado transferiria um poder que é exclusivo seu, o de desapropriação, ao setor privado. Este poderia, então, não apenas desapropriar, mas também lucrar sobre os terrenos. A estratégia, segundo especialistas, pode deixar os proprietários de imóveis à mercê das vontades do mercado imobiliário. “Quando o concessionário atua como intermediário entre o poder público e o cidadão, o poder público perde totalmente o controle sobre como se dá esse processo. Aí há a chance de acontecerem os ‘cheques despejos, que se tornou prática corrente na política municipal de São Paulo’”, alerta a arquiteta e urbanista Simone Gatti, que participou do processo de resistência ao Projeto Nova Luz durante a gestão de Gilberto Kassab (PSD).


2 – Mobilização
Cerca de um mês depois que o decreto foi emitido, pessoas atingidas por ele começaram a se mobilizar nas redes sociais, reuniões de bairro e em  audiências públicas com gestores da Casa Paulista e da Sehab para pressionar o governo estadual contra as desapropriações. Nas dezenas de entrevistas realizadas pelo Arquitetura da Gentrificação (AG) para esta reportagem e também durante as audiências, reuniões e debates acompanhados ao longo de cinco meses, repetiram-se, entre moradores e comerciantes com imóveis listados no documento, os relatos de medo de despejo, insegurança, tristeza e total falta de acesso aos planos do poder público.

No fim de novembro, a pressão popular parece ter surtido efeito. Em nota publicada no jornal “O Estado de S. Paulo” em 22 de novembro, a colunista Sonia Racy adiantava que o governo estadual havia revogado o decreto 59.273. A explicação vinha em aspas do próprio secretário estadual de Habitação, Silvio Torres, que concedeu entrevista à jornalista um dia antes da publicação da nota: “Decidimos ser melhor estabelecer perímetros de ação e desapropriar conforme os projetos para a área forem se concretizando”. A nota não menciona o fato de que a maioria dos imóveis listados está em pleno uso, e que por isso o decreto estava sendo contestado pela sociedade.

Com base no que foi publicado pelo jornal, o AG entrou em contato com a assessoria de imprensa da Sehab e foi informado de que o órgão só se pronunciaria sobre a revogação depois que fosse publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo – o que aconteceu seis dias depois, em 28 de novembro. Nesse mesmo dia, o AG voltou a procurar a assessoria da Sehab. A resposta veio em 5 de dezembro, como nota padrão à imprensa:

Nota enviada por email à reportagem

Nota enviada por email à reportagem em 5 de dezembro

Embora a notícia da revogação tenha sido comemorada por pessoas afetadas pelo decreto, muitas estão céticas, pois acreditam que a ação do governo foi uma estratégia para diluir a resistência da sociedade civil. O texto do decreto de revogação traz uma forte evidência de que o governo do estado se prepara, do ponto de vista jurídico, para não ser “incomodado” pela população caso reinicie um novo processo de desapropriação. Não se sabe ainda quando, e se, haverá a publicação de um novo decreto.

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Confira a seguir os detalhes desse projeto que, com o objetivo de construir moradias e “revitalizar” o centro da cidade, ameaça desalojar milhares de pessoas, além de fechar indústrias e comércios consolidados.

3 – “Este Natal vocês já não devem passar em casa”
Essa frase foi dita pelo advogado Eduardo Tadeu Gonçalves, do escritório Rodriguez Gonçalves, a moradores da rua Tenente Pena, no Bom Retiro, durante reunião de esclarecimento marcada por cerca de 20 residentes e comerciantes daquela rua que, pela primeira vez, tentavam entender o que era o decreto de desapropriação. Com a frase, o advogado quis alertar para o caminho rápido e sem volta do decreto assinado por Alckmin em junho. O escritório Rodriguez Gonçalves foi um dos que propagandearam seus serviços deixando sob a porta dos moradores dessa localidade do Bom Retiro uma pasta contendo apresentação do tema e currículo da empresa, e por isso foi chamado para uma conversa na comunidade.

Milan e Nilza Weiss, de 71 e 66 anos respectivamente, aposentados e moradores da rua Tenente Pena há 25 anos, perderam as energias. “Tínhamos uma reforma prevista para a casa, mas deixamos de lado. Minha esposa agora está tomando antidepressivo”, conta Milan. A seis quilômetros dali, na rua Rocha, na Bela Vista, a mesma história se repete. O engenheiro Fábio Minoru Hiratomi ficou sabendo do decreto por meio de cartas enviadas por escritórios de advocacia e por suas vizinhas de comércio, donas da Barrica Negra, importadora de vinho também incluída nas possíveis desapropriações. “As meninas da Barrica chegaram chorando para contar. Foram informadas pelo corretor delas. Recebemos duas ou três cartas de escritórios de advogados oferecendo serviços”, conta Minoru, que tem uma oficina de funilaria e pintura há dez anos no local.

Sem saber do que estava por vir, este ano Minoru investiu cerca de R$ 350 mil no imóvel para a instalação de um centro automotivo. Ao todo, os negócios do empresário na rua Rocha – incluindo um estacionamento – empregam 36 funcionários. Todos os imóveis são alugados. “Minha família e eu vivemos disso. [Se a desapropriação acontecer] eu fecharei a empresa e não irei procurar outro espaço. Não tenho mais condições de buscar outro negócio, local, mudar a empresa daqui pra lá. Viraria empregado em alguma empresa. Honraria financiamentos, indenizaria funcionários, mas fecharia”, avalia o empresário.

Centro automotivo de Fábio Minoru, na rua Rocha, Bela Vista

Centro automotivo de Fábio Minoru, na rua Rocha, Bela Vista

Assim como ele, o casal Maria Paula Macedo e Naur Augusto aplicaram suas economias no negócio, o bar noturno Titus (apelido de Naur), também na rua Rocha. “A gente abandonou duas carreiras para investir no bar. Eu sou publicitária e o Naur é produtor de cinema. Ele vendeu o apartamento para investir. Queríamos começar a abrir para o almoço. Empregaríamos pelo menos mais dez funcionários além dos seis que já temos, mas não temos condições de fazer isso por medo [da desapropriação]”, conta Maria Paula, em entrevista feita antes da revogação do decreto. A casa onde está o bar, um sobrado, é alugada. O andar de cima é residência de uma família que também é inquilina no imóvel. Segundo a empresária, o proprietário da casa não quer vendê-la, pois é de família e sua fonte de renda. Ela garante que têm sido comuns as investidas de construtoras tentando comprar casas na região. “Um corretor procurou um vizinho oferecendo um valor baixo, dizendo que vai ter habitação popular e que vai desvalorizar, e que por isso era melhor vender antes para não perder mais dinheiro”, narra a empresária.

Para Minoru, a causa da PPP de Habitação é nobre, mas esta está sendo executada de forma equivocada. “Tinha de ser feita uma consulta pública com os afetados, saber quantos empregos seriam perdidos, qual o impacto sobre a população”, diz. O casal Nilza e Milan, Maria Paula, Naur, Minoru, os moradores e comerciantes da rua Tenente Pena e todas as demais pessoas com imóveis incluídos no decreto entrevistadas para esta reportagem foram unânimes em dizer que em nenhum momento foram procuradas pelo poder público para serem informadas das desapropriações.

Interior do Titus Bar, também na rua Rocha. Foto/Divulgação

Interior do Titus Bar, também na rua Rocha. Foto/Divulgação


4 – Erro pontual ou “mapeamento aéreo”?
Assim que surgiram as primeiras críticas públicas da população ao decreto, em agosto, o subsecretário da agência Casa Paulista, Reinaldo Iapequino, passou a explicar, sempre que era questionado em audiências e encontros públicos, que se tratava de erros técnicos pontuais as escolhas de imóveis e terrenos em uso a serem desapropriados. Os erros, segundo Iapequino, seriam revistos por profissionais da empresa estadual Companhia Paulista de Obras e Serviços (CPOS) e corrigidos em seguida no decreto.

O mapeamento realizado de forma independente pela bióloga Claudia Roedel e outros moradores da região central, porém, mostrou que os erros não configuravam ocorrências isoladas, e sim uma escolha aparentemente deliberada de imóveis e terrenos independentemente de estes serem ou não vazios urbanos. O critério de escolha, segundo a análise, respeita apenas desenhos urbanos, que ora se parecem com uma nova rua a ser aberta, ou uma passagem, ora se assemelham a blocos que, uma vez vazios, poderiam receber construções do porte de um shopping center, por exemplo. Parte dos endereços das desapropriações está concentrada em áreas onde há estações de metrô e trem em funcionamento ou, ainda, próximas a novas estações já planejadas. São regiões cuja valorização do preço da terra elevará o preço dos imóveis e do custo de vida, tornando a moradia inacessível para pessoas de baixa renda.

“Em uma entrevista à TV Gazeta, Silvio Torres diz que vão pagar o valor de mercado pelos imóveis desapropriados. Vamos supor que paguem mesmo o valor de mercado por esses imóveis todos aqui [da rua Rocha], que são comerciais e residenciais [valor médio de R$ 800 mil]. Depois vão demolir, retirar entulho, construir fundações de várzea [que são mais caras], fazer um trabalho decente de esgoto para não jogar no rio… e vão vender cada unidade por menos de R$ 190 mil? [valor máximo financiado pelo programa Minha Casa, Minha Vida na região metropolitana de São Paulo]. Como eles vão ter lucro nisso?”, questiona Claudia. “Há um imóvel [na lista de desapropriação] que são três prédios de seis andares cada um e comércio embaixo. Como demolir um troço desses para construir algo novo vai conseguir gerar unidades habitacionais a serem vendidas a R$ 190 mil cada uma?” Claudia não tem imóvel listado no decreto, mas tem amigos e vizinhos próximos que foram incluídos na lista e por isso se dispôs a ajudá-los produzindo informação estratégica. A bióloga acompanha a movimentação do governo de perto e replica notícias e artigos na página “Desalojados do Alckmin”, no Facebook, criada em agosto.

Parte dos imóveis e terrenos desapropriados ficam em regiões onde há estações de metrô e trem em funcionamento ou com construção já prevista. Imagens/Claudia Roedel

Parte dos imóveis e terrenos desapropriados ficam em regiões onde há estações de metrô e trem em funcionamento ou com construção já prevista. Imagens/Claudia Roedel

Estação "Campos Elíseos", da CPTM, está prevista para região onde fica a Favela do Moinho

Estação “Campos Elíseos”, da CPTM, está prevista para região onde fica a Favela do Moinho

Outra pessoa a apontar as incongruências do decreto de desapropriação é a arquiteta e urbanista Simone Gatti. “Nas conversas que ouvi do Philip Yang [diretor do Instituto Urbem] e Milton Braga [um dos arquitetos responsáveis pelo projeto da PPP feito pelo Urbem], ficou claro que o processo de como fizeram a escolha dessas áreas foi muito parecido com o do Projeto Nova Luz: é o projeto feito de helicóptero. A análise é feita através do Google Maps, voos de helicóptero contratado e pesquisa de campo superficial”, afirma Simone. O problema, de acordo com ela, é que planejadores urbanos e gestores públicos ainda “tratam a cidade como desenho urbano e esquecem a questão do direito à cidade”. “No decreto de desapropriação é possível ver o absurdo que é lançar um decreto sem pesquisa fundiária”, completa a arquiteta.

Outra constatação de Simone sobre a escolha das áreas pelo Urbem é que foram usados critérios meramente estéticos imbuídos de uma ideologia própria. Segundo ela, esses critérios definiram, de forma arbitrária, os conceitos de “feiura”, “pobreza” e “degradação” para, em seguida, classificarem como “vazios urbanos” todos os imóveis que se enquadrassem nesses conceitos. “Grande parte da moradia de determinadas áreas da região central da cidade é ocupada por população de baixa renda. Quando você elenca essa ocupação como feia, mal cuidada, com pouca estrutura física, você a considera subutilizada?”, questiona a arquiteta. Assina o projeto do Urbem também o arquiteto e urbanista Fernando de Mello Franco, que hoje encabeça a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU). Mello Franco está ligado ao escritório MMBB, que trabalhou no projeto da PPP de Habitação, e do qual se licenciou este ano para ocupar o cargo público.

Em entrevista à revista “Piauí”, edição de setembro deste ano, o diretor do Instituto Urbem, Philip Yang, sai com o repórter para uma volta de táxi pela cidade e, próximo da avenida Radial Leste, apontando para “casas cinza com as fachadas pichadas”, diz: “Olha só o cenário, é muita feiura. Minha primeira inconformidade é com a feiura. Depois eu racionalizo. Por que é assim? Uma cidade tão ineficiente, com tanto trânsito, então você descobre que tudo faz parte da mesma equação”. Procurado pelo AG, Philip Yang não quis dar entrevista, mesmo tendo diversas vezes defendido o projeto em eventos públicos.

5 – Do caso a caso à resistência organizada
A primeira vez que os afetados pelo decreto se manifestaram diretamente ao gestor do projeto contra a desapropriação foi em 20 de agosto, durante apresentação sobre a PPP de Habitação na Associação Viva o Centro, entidade que, segundo sua página na internet, promove o “desenvolvimento urbano, social e funcional do Centro de São Paulo” e tem como principais associados banqueiros e empresários.

O que era para ser uma simples exposição do projeto feita pelo subsecretário da Casa Paulista, Reinaldo Iapequino, acabou se tornando um acalorado debate marcado por falas dos atingidos. Eles exigiam do subsecretário explicações sobre os critérios usados pelo governo na escolha dos imóveis e terrenos e sobre a falta de informação pública, e, principalmente, expunham narrativas que provavam que suas residências e comércios não eram vazios urbanos. O AG esteve presente e registrou a íntegra do encontro. Assista aqui.

Pressionado, Iapequino voltou a defender a tese do “erro pontual” do decreto e a afirmar que todos os equívocos seriam corrigidos mediante vistoria feita pela Companhia Paulista de Obras e Serviços (CPOS). Para demonstrar boa vontade, ele deu o próprio email profissional aos presentes e pediu que estes lhe enviassem os nomes completos e endereços para que seus imóveis fossem retirados da lista de desapropriação. Com a estratégia de tratar caso a caso, os ânimos se acalmaram um pouco durante a reunião, e a exposição sobre a PPP pôde prosseguir.

Ao longo das semanas após o anúncio da lista de desapropriações, outras aberrações foram surgindo: conventos, escolas, creches, equipamentos culturais e comércios tradicionais da cidade também estavam no decreto. Com a exposição dos casos na imprensa, o poder público se viu obrigado a ampliar o “caso a caso” e demonstrar interesse sobre a situação dos afetados. Foi assim com a Padaria 14 de Julho, tradicional no bairro do Bixiga e que funciona no mesmo imóvel desde 1897.

“Não tivemos notificação nenhuma [do poder público]. Foi um advogado que passou aqui oferecendo serviço para nos defender. Depois que a gente saiu na imprensa, veio à padaria o secretário de Habitação [do estado, Silvio Torres] com mais umas quatro pessoas dizendo que a desapropriação não aconteceria. Disseram que deve ter havido um engano e que estavam reavaliando”, disse o proprietário Alexandre Ricardo Franciulli.

Padaria 14 de Julho, centenária, constava no decreto de desapropriação

Padaria 14 de Julho, centenária, constava no decreto de desapropriação

Secretário estadual de Habitação, Silvio Torres, visitou o estabelecimento e disse que inclusão no decreto foi um "erro"

Secretário estadual de Habitação, Silvio Torres, visitou o estabelecimento e disse que inclusão no decreto foi um “erro”

Inaugurado na década de 1970, o condomínio Nova Perimetral, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, também recebeu a promessa de ser “retirado” do decreto. “Foi um erro que incluiu nosso condomínio. A gente fez um ofício para a Sehab, fomos lá e retificamos. Fui a uma reunião com um diretor da Casa Paulista”, afirmou o síndico do Nova Perimetral, Flavio Guarniero, que não soube dizer com precisão o nome do diretor do órgão público com quem conversou. O condomínio, em pleno uso, tem 312 apartamentos, cerca de 900 moradores e 28 lojas no térreo.

Segundo Rosana Rocha Pinto, moradora presente no encontro da Associação Viva o Centro e cuja residência constava no decreto, a luta contra as desapropriações ganhou força quando o deputado estadual Carlos Giannazi (Psol) decidiu apoiar a causa. Em 16 de agosto, quatro dias antes da reunião na associação, o deputado realizou audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) para discutir estratégias de resistência em nível jurídico. Na ocasião, Giannazi propôs o Projeto de Decreto Legislativo 09/2013 para revogar o decreto 59.273. Em 23 de agosto, o deputado conseguiu uma audiência pública com os moradores e o secretário estadual de Habitação, Silvio Torres. Naquele dia, Torres afirmou que os imóveis residenciais e comerciais em uso seriam retirados do decreto, e que sua equipe estava “fazendo um pente fino” para encontrar outras falhas na lista de imóveis que seriam desapropriados. Em 2 de setembro, foi realizada nova audiência na Alesp, durante a qual os moradores entregaram à Sehab uma relação de imóveis que cumpriam a função social. Cinco dias depois, uma nova lista foi protocolada e entregue ao subsecretário da Casa Paulista, Reinaldo Iapequino.

Rosana afirma que pouco tempo depois das audiências e entrega das listas, técnicos da CPOS visitaram sua casa e as de outras pessoas no Bom Retiro. Fábio Minoru Hiratomi, empresário do setor automotivo com negócios na rua Rocha, na Bela Vista, também afirmou que funcionários “em uma Kombi da prefeitura” visitaram seu empreendimento em meados de novembro. “Perguntaram quantos funcionários havia, há quanto tempo o imóvel estava alugado e quando foi inaugurada a Caçula de Pneus [franquia de Minoru]. O técnico fotografou e na parte [do relatório onde estava] ‘desapropriar ou não’, marcou ‘não’. Disseram que era só uma pesquisa por conta da desapropriação. Eles me mostraram que [a empresa] constava como um galpão vazio”, contou Willian Novaes Machado, gerente na empresa de Minoru.

Com o trabalho de resistência ganhando corpo e demandando estratégias, os afetados pelo decreto decidiram montar uma associação. “A ideia surgiu porque para a gente lutar [em um nível institucional] é muito mais fácil quando se tem um CNPJ [Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica]”, conta Rosana, que será a presidenta da entidade. Toda a documentação para a criação da associação já foi entregue ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas de São Paulo (RCPJ/SP). Prevendo que a atuação da entidade não será restrita ao caso da PPP de Habitação do Centro, a razão social escolhida para nomeá-la foi “Associação dos Munícipes de São Paulo Afetados por Decretos de Desapropriação”. O nome fantasia ainda está sendo decidido pelos membros da entidade, que conta com 11 pessoas – presidente, vice, dois secretários, dois tesoureiros, três conselheiros fiscais e dois suplentes.

Condomínio Nova Perimetral, na avenida Brigadeiro Luís Antonio

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Síndico preparou ofício, encontrou-se com gestor da Casa Paulista e recebeu a promessa de que imóvel seria retirado do decreto

Síndico preparou ofício, encontrou-se com gestor da Casa Paulista e recebeu a promessa de que imóvel seria retirado do decreto


6 – Contra a lei: população sem chance de participar e decidir
O projeto desenvolvido pelo Instituto Urbem para a PPP de Habitação no Centro não contou, em nenhum momento, com a participação da população, como manda o artigo 2º, inciso II, do Estatuto da Cidade, que é lei federal: “(…) gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”. Outra violação legal da PPP é a não formação do Conselho Gestor de Zeis (Zona Especial de Interesse Social). A criação do conselho é obrigatória, segundo o Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2002, sempre que um projeto estiver sobre Zeis, áreas destinadas prioritariamente à regularização fundiária, urbanização e construção de habitação social, como é o caso de diversas regiões do centro da cidade abarcadas pela PPP. O conselho, de acordo com o PDE, deve ser composto por representantes dos atuais ou futuro moradores e do Executivo, que deverão participar de todas as etapas de elaboração do Plano de Urbanização e de sua implementação”.

Além disso, mesmo estando pronto desde outubro de 2012, o projeto do Instituto Urbem só chegou ao conhecimento público em meados de novembro deste ano, com a publicação, no site da Casa Paulista, dos 12 tomos dos estudos desenvolvidos pelo instituto, que embasaram o desenho urbanístico da PPP. Na Câmara Municipal, a primeira audiência pública para tratar do tema só aconteceu em 9 de outubro deste ano, mesmo estando prevista a participação da prefeitura com R$ 404 milhões em investimentos para o programa e com o decreto de desapropriação publicado desde junho. Nessa audiência, foram apontadas semelhanças entre os erros nas consultas públicas da PPP e do projeto Nova Luz,  “engavetado” pelo prefeito Fernando Haddad no início do ano. O registro dessa audiência pode ser visto aqui (basta digitar “PPP” no espaço de busca para encontrar o vídeo).

Atento a essas violações, o promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo (MP), Maurício Ribeiro Lopes, moveu uma ação civil pública pedindo a suspensão da PPP de Habitação do Centro, com o argumento de que não houve a participação pública exigida pelo Estatuto da Cidade e pelo PDE; no caso, a não formação do Conselho Gestor de Zeis. Com a suspensão, o promotor queria forçar o Estado a reformular o projeto considerando a participação da sociedade civil em todo o processo. Em julho, Ribeiro Lopes teve liminar negada em primeira instância pelo juiz Randolfo Ferraz de Campos, da 14ª. Vara de Fazenda Pública. O promotor recorreu e, em 23 de agosto, o desembargador Xavier de Aquino, da 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, deferiu a liminar, suspendendo a PPP temporariamente.

Em 1º de outubro, o promotor Ribeiro Lopes reuniu-se a portas fechadas no MP com o secretário estadual de Habitação, Silvio Torres, e com o subsecretário da Casa Paulista, Reinaldo Iapequino, com o objetivo de negociar a participação efetiva da população na PPP. No entanto, segundo o próprio promotor, a conversa não avançou. “Eles querem esperar a decisão judicial que foi proposta. (…) Eles têm esperança de que vão derrubar a decisão judicial e que não vão precisar negociar com o Ministério Público, e vão fazer as coisas como eles acham que devem ser feitas”, declarou Ribeiro Lopes ao AG à época.

Menos de dois meses depois de suspender o projeto, em 16 de outubro o desembargador Xavier de Aquino voltou atrás em sua decisão e revogou a própria liminar. Como justificativa, escreveu: “Houve audiência pública, levada a efeito no dia 27.02.2013 (…) sendo certo que dela participaram quase uma centena de pessoas, destacando-se representantes de movimentos de moradia, Defensoria Pública, Universidades, bem como entidades da sociedade civil, quando então o tema nuclear foi amplamente discutido (houve lista de presença e ata respectiva)”.

Um dia depois, o promotor Ribeiro Lopes falava ao AG sobre a decisão do desembargador: “Há uma incorreção [na justificativa do desembargador Xavier de Aquino] ao dizer que houve uma audiência pública em fevereiro. Não foi em fevereiro, foi em março, e essa audiência pública foi realizada não para atender qualquer disposição do Estatuto da Cidade, mas para atender a lei de licitações. Então é uma audiência pública com uma finalidade completamente diversa da participação popular prevista no Estatuto da Cidade como uma condição primeira da gestão democrática da cidade. Isso provoca uma alteração profunda da vida da cidade. As pessoas afetadas não foram cientificadas em nenhum momento para que pudessem, de alguma forma, participar do projeto”.

Procurado pela reportagem do Arquitetura da Gentrificação, o desembargador Xavier de Aquino concedeu a seguinte entrevista em seu gabinete:

Em que se baseou a sua primeira decisão de conceder a liminar?
Todo magistrado, quando recebe uma decisão, pretende a manutenção do status quo ante, que é manter as coisas como estão. Depois vieram informações [do governo do estado] e o pedido de reconsideração, dando conta de que o promotor de Justiça que havia intentado a ação estava exigindo certas cautelas que foram atendidas. Eu verifiquei dentro do processo e elas estavam atendidas. Daí que reconsiderei minha decisão anterior.

Que documentos o estado forneceu?
Primeiramente, o representante do MP exigiu a participação de várias pessoas nessa audiência pública, e eu verifiquei que realmente participaram universidades, o povo. Menos o promotor de Justiça. Ele não compareceu. E ele não foi claro na sua exigência, ele falou genericamente.

O senhor cita uma audiência pública na sua justificativa. Essa audiência era uma mera formalidade da lei de licitação, segundo o promotor.
E nessa audiência ele [promotor] não compareceu, conforme lhe cumpria. Eu tenho de verificar no exame dos autos quando vou julgar o mérito da questão se não existe uma higienização da população local. Mas é público e evidente que a função social da propriedade nesse projeto da PPP de revitalização do centro vai dar dignidade humana às pessoas que ali podem eventualmente viver. Não vão desalojar as pessoas dali. Vão dar a oportunidade de uma vida digna com supermercado, shopping center, espaço para andar com bicicleta às pessoas que lá circulam e vivem hoje em situações não muito dignas.

O senhor tem acompanhado a questão do decreto de desapropriação de mais de 950 imóveis cujos proprietários não foram avisados?
Essa notícia não tem nos autos. Na verdade estou sabendo por você, que está me dizendo isso agora.

Faço essa pergunta porque toda a argumentação do promotor se baseia no fato de que não houve participação pública no processo de criação…
O que ele não explicou é que quando ele podia participar, ele não participou.

É essencial que ele participe?
Qualquer pessoa, quando entra com uma ação civil pública ou um instrumento que a valha, [é importante que] mostre interesse. Ele disse também de forma genérica que ele queria participação maior, e aqui no caso houve participação popular, universidades, população local. As pessoas mostraram interesse, e ele não apareceu. Eu verifiquei tudo isso no processo e daí que eu resolvi reconsiderar minha atuação anterior. Porque não basta alegar, é necessário que se prove, que se mostre interesse.

O senhor alega que ele foi genérico na solicitação. Como seria uma solicitação específica de participação popular?
Ele devia dizer o porquê das coisas. Não basta alegar eu quero isso e aquilo.

Esta última afirmação de Xavier de Aquino faz eco a uma fala do subsecretário da Casa Paulista, Reinaldo Iapequino, dita durante audiência pública em 9 de outubro na Câmara Municipal de São Paulo – portanto, uma semana antes de o desembargador revogar a suspensão da PPP: “Eu tendo a não concordar plenamente com o promotor quando ele diz que não houve participação popular. Pode não ter havido do jeito que ele entende que não houve”, disse Iapequino (na Galeria de Vídeo no site da Câmara, basta digitar “PPP” na caixa de busca. A fala começa no minuto 102).

Como Xavier de Aquino, o subsecretário questiona os critérios de participação pública utilizados pelo promotor Ribeiro Lopes para justificar a ação civil pública, critérios retirados do Estatuto da Cidade (lei federal) e do Plano Diretor Estratégico de 2002, lei municipal. O desembargador vai ainda mais longe no questionamento ao dizer que Ribeiro Lopes foi genérico em sua solicitação.

O AG teve acesso à íntegra da ação civil pública e identificou que entre as páginas 14 e 21 de um dos documentos compilados, emitido em 27 de maio, Maurício Ribeiro Lopes fundamenta e dá detalhes, com base na lei, sobre aspectos concretos de como seria a participação pública. Em contraposição, na página 22, o promotor diz o que não é participação popular, referindo-se exatamente à audiência realizada em março deste ano e que o governo estadual, e depois o desembargador Xavier de Aquino, utilizam como argumento para dizer que a sociedade civil participou, sim, da PPP: “Apresentações de power point apresentadas na audiência pública que – insta-se – nada teve a ver com participação popular em formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano – promovidos pelo Governo do Estado não podem ser considerados informações prestadas à população; são meros esquemas sem os respectivos materiais de fundamento: estudos, projetos, planos, programas, absolutamente insuficientes para o conhecimento do assunto, necessário ao exercício da constitucional democracia participativa”.

Para dar força à sua argumentação, o promotor público cita, a partir da página 31, ação civil pública análoga proposta por ele em 2011, contra a Prefeitura de São Paulo no caso da Operação Urbana Consorciada Vila Sônia. À época, o juiz Marcos de Lima Porta, da 5ª Vara da Fazenda Pública, determinou a suspensão do projeto por falta de participação popular na sua criação, como manda o Estatuto da Cidade. A prefeitura ainda tentou recorrer com um agravo de instrumento, mas não conseguiu reverter os efeitos da liminar. O projeto segue paralisado.

Em 4 de novembro, Ribeiro Lopes enviou ao desembargador Xavier de Aquino pedido de reconsideração de sua decisão para que a liminar revogada volte a ter efeito suspensivo sobre a PPP de Habitação. Até o fechamento desta reportagem não constava nos autos retorno sobre o pedido do promotor.

7 – Revogação do decreto: um passo atrás para muitos passos à frente depois?
“Com um decreto desses fica tudo mais fácil. Estão mudando as leis, reloteando São Paulo. De que adianta ter um imóvel com escritura se a construtora bate aqui e te manda sair? As pessoas não entendem que isso pode acontecer com elas daqui a algum tempo, com um parente, no Brasil inteiro. Estão vendendo tudo de novo!” O alerta foi feito em 13 de novembro pela empresária Maria Paula Macedo, que teve o bar incluído na lista de desapropriações.

Menos de um mês antes, em 24 de outubro, a presidenta Dilma Rousseff sancionava a Lei 12.873, que trata da modernização de armazéns que guardam produtos agropecuários. Aparentemente, a nova lei não tem qualquer relação com a questão das desapropriações. Mas uma manobra dos parlamentares fez que um artigo fosse “contrabandeado” para o meio dela. Trata-se do artigo 49, que em sua redação, altera o artigo 4º do Decreto-Lei 3365, de 1941, que fala das desapropriações por utilidade pública. Com a alteração, o artigo 49 da Lei 12.873 determina o seguinte: “Quando a desapropriação destinar-se à urbanização ou à reurbanização realizada mediante concessão ou parceria público-privada, o edital de licitação poderá prever que a receita decorrente da revenda ou utilização imobiliária integre projeto associado por conta e risco do concessionário, garantindo ao poder concedente no mínimo o ressarcimento dos desembolsos com indenizações, quando estas ficarem sob sua responsabilidade”.

Nas palavras da arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, “isso vai permitir que uma empresa privada que ganhe uma concessão para reurbanizar um bairro numa cidade qualquer – Botafogo, no Rio de Janeiro, por exemplo –, possa não apenas realizar as obras, como já acontece hoje, mas também tornar-se dona do bairro inteiro, pois também poderá desapropriar para depois investir em megaempreendimentos imobiliários naquele território”.

Quando o Projeto Nova Luz foi combatido pela sociedade civil durante a gestão Kassab, não foi posta em questão apenas a falta de participação pública , mas também o uso do instrumento chamado “concessão urbanística”. Este instrumento previa, em essência, exatamente o que pretende a PPP de Habitação do Centro e o que foi legitimado, em nível federal, pela presidenta Dilma na Lei 12.873/2013: a transferência do poder de desapropriação do Estado ao setor privado, e a produção do lucro, pelo mercado, sobre os imóveis e terrenos desapropriados.

No debate realizado em agosto na sede da Associação Viva o Centro, o AG questionou o subsecretário Iapequino sobre a semelhança entre a concessão urbanística utilizada no Nova Luz e a estratégia utilizada na PPP de Habitação. Ele negou a similaridade, apesar de todas as evidências. Veja no vídeo (início em 1:09:19):

Proposto em dissertação de mestrado em 2001 pelo jurista Paulo Lomar e incorporado ao Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2002, o instrumento de concessão urbanística tem o objetivo, segundo seu criador, de desburocratizar e dar celeridade a atividades e processos de urbanização. À época do Projeto Nova Luz, o instrumento teve sua constitucionalidade veementemente questionada. “Esse projeto de lei [do Projeto Nova Luz] está criando, na prática, a figura de concessionária de especulação imobiliária, atividade vetada ao próprio poder público. Como é possível transferir a particular o poder de desapropriar para fins de revenda, o que é vetado ao próprio poder público?”, questionou o jurista Kiyoshi Harada (leia a crítica completa aqui).

Coincidência ou não, o decreto de desapropriação 59.273 da PPP de Habitação do Centro foi revogado em 28 de novembro, pouco mais de um mês depois da sanção da nova lei por Dilma Rousseff, e trouxe, entre as justificativas para a revogação, justamente o tal artigo 49, que foi “contrabandeado” para dentro da nova lei: “Considerando a edição da Lei Federal 12.873, de 24 de outubro de 2013, que altera o Decreto-lei federal 3.365, de 21 de junho de 1941, que dispõe sobre as desapropriações de utilidade pública (…)”.

Entre especialistas, moradores afetados pela PPP e pessoas que acompanharam o processo do Projeto Nova Luz, o “passo atrás” representado pela revogação é, na verdade, muitos passos à frente, um movimento estratégico do governo estadual que se blinda com a nova lei e torna mais difícil a contestação da constitucionalidade das desapropriações que serão feitas pelo setor privado.

A fala do secretário estadual de Habitação, Silvio Torres, à jornalista Sonia Racy em 22 de novembro, também levantou suspeitas. “Decidimos ser melhor estabelecer perímetros de ação e desapropriar conforme os projetos para a área forem se concretizando”, disse Torres. Para os moradores afetados pela PPP, a estratégia de desapropriar projeto a projeto tem o objetivo de dispersar a resistência, fazendo que os moradores de diferentes bairros não briguem mais por uma mesma demanda, mas apenas pela de seu bairro.

Para o arquiteto e urbanista Felipe Francisco de Souza, revogar o decreto e desarticular os movimentos é, sim, uma estratégia do governo. “Veja a concessão urbanística: a maioria das aprovações ocorreu na gestão Haddad, [num contexto em que] os movimentos respiraram aliviados com a entrada do PT no poder. [Houve] diversas aprovações, chancelas e julgamentos que possibilitam a utilização do instrumento da concessão urbanística e também a possibilidade de transferência dos ‘poderes de desapropriação ao privado’”, diz o urbanista. “[Há] o andamento da revisão do Plano Diretor de São Paulo, que não descartou o instrumento [de concessão urbanística] de seu corpo de texto, e a empreitada bem-sucedida do deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para aprovar a medida provisória concedendo ‘transferência de poderes’”, completa Souza, referindo-se à Lei 12.873. A introdução do artigo 49 na lei, segundo o urbanista, foi articulada durante meses pelo deputado Cunha.

Felipe Francisco de Souza é autor do livro “A batalha pelo Centro de São Paulo – Santa Ifigênia, Concessão Urbanística e Projeto Nova Luz”, sobre a tentativa de implementação do Nova Luz no centro da cidade. Quando o escreveu , Felipe de Souza trabalhava como planejador urbano na Prefeitura de São Paulo, onde permaneceu de 2001 a 2010, durante as gestões Marta Suplicy (PT), José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD) (veja entrevista exclusiva com ele no Apêndice 2).

Estava previsto para 21 de novembro o lançamento do edital de licitação para a contratação das empresas e consórcios que executariam o projeto do Urbem para a PPP. Com a revogação do decreto de desapropriação, porém, a licitação foi cancelada, e não foi possível, até o momento, saber quais os próximos planos do governo, nem quando e se serão anunciados. Outro fato recente também lança dúvidas sobre o edital de licitação da PPP: o escândalo da quadrilha de auditores da gestão Kassab que, em parceria com empresas do setor imobiliário, fraudavam o pagamento de ISS aos cofres públicos. O prefeito Fernando Haddad afirmou que pelo menos 15 empresas, entre incorporadoras e construtoras, serão investigadas.

Os nomes ainda não foram revelados e, ao que parece, não o serão tão cedo. Se mesmo com essa blindagem sobre o setor imobiliário o edital de licitação for lançado, será mais uma opacidade a envolver a execução da PPP de Habitação, pois não será possível saber se os concorrentes estão ou não envolvidos no esquema de corrupção.

A bióloga Claudia Roedel, que mapeou os imóveis listados no decreto, acredita que o governo pode tomar decisões importantes sobre a PPP de Habitação durante o período de festas e férias de fim de ano, quando haverá pouca gente para resistir a algum processo eventualmente arbitrário. Sua afirmação baseia-se na lógica de não participação pública, de falta de transparência e de diálogo em que vem trabalhando a Secretaria da Habitação  estadual.

Desde 19 de novembro, e depois com mais ênfase após a publicação da revogação do decreto no Diário Oficial no dia 28 do mesmo mês, o Arquitetura da Gentrificação vem pedindo uma entrevista com Reinaldo Iapequino à assessoria de imprensa da Sehab. Até o momento, no entanto, nenhuma solicitação foi atendida.


8 – Apêndice 1 – PPP de Habitação: Projeto Nova Luz turbinado?
Quando o prefeito Fernando Haddad (PT) engavetou o Projeto Nova Luz, em janeiro deste ano, movimentos sociais e urbanistas olharam com ceticismo para a ação. Simone Gatti, arquiteta e urbanista que atuou no processo de resistência ao Nova Luz e ajudou a criar o Conselho Gestor da Zeis da Santa Ifigênia, entendeu que o Nova Luz reapareceria em algum momento. “Assim que foi lançado [o projeto da PPP] eu pensei: é o projeto Nova Luz na cidade toda. Isso antes de sair o decreto de desapropriação. Quando saiu [o decreto], isso só se confirmou”, diz.

O decreto de desapropriação da PPP de Habitação, lançado pelo governo do estado sem que a população afetada fosse avisada antes ou depois da divulgação do documento, repetiu a falta de transparência do então vice-prefeito Gilberto Kassab quando ele lançou o decreto de desapropriação 46.291, em 2005, para executar o Nova Luz. Em seu livro sobre o projeto de Kassab, o urbanista Felipe Francisco de Souza narra: “Naquele período [2005], o então vice-prefeito Gilberto Kassab estava em exercício no cargo de prefeito [ocupado então por José Serra] e declarou de utilidade pública – para fins de desapropriações – , imóveis particulares na Santa Ifigênia ‘necessários à execução de um plano de urbanização’, que, até aquele momento, era inexistente ou desconhecido da população local”.

Outra semelhança evidente é o uso, como instrumento de viabilização do projeto, da transferência do poder de desapropriação do Estado ao setor privado. Haddad, quando anunciou o engavetamento do Nova Luz em janeiro, deixou claro que era contrário a esse modelo: “Havia aspectos da Luz que me preocupavam. Por exemplo, delegar para o agente privado a possibilidade de ele tomar decisão a respeito dos bens a serem desapropriados”. O atual prefeito, no entanto, não deixou de anunciar a parceria com o governo do estado e o aporte de R$ 404 milhões da prefeitura apenas um mês depois de ter se manifestado contra o modelo que delega ao agente privado o controle sobre os bens desapropriados, agora transformado em lei federal pela presidenta Dilma Rousseff.

Falta de participação pública, como obriga o Estatuto da Cidade, não constituição do Conselho Gestor de Zeis, como determina o PDE de 2002, e questionamento na Justiça por conta dessas violações legais também são semelhanças entre o Nova Luz e a PPP de Habitação no Centro. Até o discurso da revitalização, do progresso, do combate à pobreza e à “cracolândia” é mote de convencimento da população tanto de um quanto de outro projeto.

A principal diferença entre o Nova Luz e a PPP está na abrangência. Enquanto no Nova Luz seriam desapropriados 45 quarteirões contíguos nas regiões da Luz e Santa Ifigênia, na PPP de Habitação seriam desapropriados – até a revogação do decreto – mais de 950 imóveis e terrenos espalhados por pelo menos 12 bairros: Sé, Liberdade, Cambuci, Brás, Bela Vista, Mooca, Santa Cecília, Bom Retiro, Pari, Belém, Barra Funda e República. Em termos de impactos sociais, econômicos e estruturais, a PPP superaria de longe o Nova Luz.

Apesar do cenário desfavorável à gestão transparente e democrática que caracterizam os dois projetos, Simone Gatti acredita que a PPP, também à semelhança do Nova Luz, não irá adiante. “A sociedade está se fortalecendo muito, está amplamente engajada e tendo apoio do Ministério Público e da Defensoria [Pública] em relação a essas intervenções que estão indo contra o direito à cidade. Cada desapropriação dessas pode gerar um embate jurídico muito grande.”


9 – Apêndice 2 – Entrevista com Felipe Francisco de Souza, arquiteto e urbanista

‘Tanto a PPP quanto a concessão urbanística seriam uma nova maneira de privatização’

O arquiteto e urbanista Francisco Felipe de Souza trabalhava na Prefeitura de São Paulo quando escreveu o livro “A batalha pelo Centro de São Paulo – Santa Ifigênia, Concessão Urbanística e Projeto Nova Luz”. A obra trata da criação e tentativa de implementação do Projeto Nova Luz pelos governos municipais de José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD). Trata, de forma especial, do instrumento de “concessão urbanística”, que permite ao Estado transferir ao setor privado o poder de desapropriar e lucrar com empreendimentos erguidos nas áreas desapropriadas. A essência desse instrumento é exatamente a mesma utilizada na atual PPP de Habitação do Centro. “Não me admira que esse novo processo com a PPP de Habitação tenha problemas com a participação popular porque é entendida, no contexto brasileiro, como algo que vai trazer mais morosidade ao processo, e logicamente vai diminuir o lucro – essa é a maneira de raciocinar do investidor privado quando se fala das PPPs”, explica o urbanista.

Após a publicação do livro, em 2011, Souza sofreu represálias por revelar detalhes – e nomes – da relação de gestores públicos com agentes do capital imobiliário. Confira a entrevista exclusiva que ele concedeu ao AG diretamente do Japão, onde vive e trabalha há dois anos.

O que você fazia na época em que escreveu o livro?
Ainda fazia graduação na Unesp [Universidade Estadual Paulista, em São José do Rio Preto]. No último ano eu mudei de volta para São Paulo, e comecei como estagiário na gestão da Marta [Suplicy, PT] . Fiquei primeiro no departamento de uso do solo e depois fui para o departamento de operações urbanas consorciadas. Fiquei de 2001 a 2010 na prefeitura. Eu tinha cargo como planejador urbano. Passei pelas gestões Marta, [José] Serra (PSDB) e [Gilberto] Kassab (PSD).

Como surgiu seu interesse pelo tema do Nova Luz?
Você vai percebendo que ano após ano [na prefeitura] os computadores vão melhorando, as práticas de fazer projeto vão se aprimorando, mas você não vê nenhuma melhora na cidade, nada muda. Você vai trabalhar todos os dias com a perspectiva de ver as coisas acontecerem e efetivamente nada acontece. Aí você pensa: tudo bem, é esta gestão. Mas aí a gestão muda e as coisas não se alteram. Eu percebi que o que poderia ser um problema técnico podia ser de cunho político. Um amigo sugeriu que eu fosse estudar políticas públicas para entender minha crise. Me inscrevi no mestrado da FGV [Fundação Getúlio Vargas]. O tema foi evoluindo e cheguei à concessão urbanística, que estava em pauta no momento. O fato de estar na prefeitura ajudou minha pesquisa. As pessoas não tinham muita ideia de aonde chegaria minha pesquisa, e eu também não era conhecido, não tinha nada publicado. Então fui conseguindo. Falei com o pessoal do Secovi [Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais], me davam entrevistas, falei com diversas pessoas da prefeitura. Como eu era novo, eles me davam informação. Eu saía dos departamentos com calhamaços de documentos. Quando eu parei para ver tudo o que tinha em mãos, vi que tinha algo. Quando eu comecei a redigir a dissertação eu pensei que precisava tomar um lado, porque querendo ou não isso ia afetar minha carreira na prefeitura e o processo todo. Fui adiante. Como eu era funcionário público, uma boa maneira de gastar o dinheiro dos impostos da população era [fazendo] as pessoas saberem o que estava acontecendo.

De onde veio esse projeto?
Era um projeto que vinha totalmente de fora, externo a qualquer entendimento do urbanista da casa. Comecei a entender que essa demanda veio de forças do capital imobiliário, e que a demanda das pessoas não estava sendo respeitada.

Você aponta bem esse aspecto no seu livro.
Comecei a questionar a participação popular, que aparece na Constituição [Federal], no Estatuto da Cidade. As pessoas não sabiam qual era o futuro delas, elas estavam sofrendo, temiam pelo comércio, pelo emprego. Se você olha a realidade do centro de São Paulo, são pessoas que herdaram a casa de um parente e não têm condições de comprar a mesma casa com a mesma infraestrutura em outros lugares da cidade se ela for embora do centro. Eu vi que tinha uma crise do Estado democrático brasileiro, da participação popular. A questão da participação no planejamento urbano aqui no Japão é muito forte, não porque a propriedade é muito fraca, pelo contrário! Aqui a propriedade privada é tão forte que eles não têm outra solução a não ser chamar todo mundo na mesa para dialogar. Esses projetos duram muito tempo. Há projetos com tempo de maturação de mais de dez anos, nos quais você precisa ter uma força institucional muito grande, para que eles não durem apenas uma gestão político-partidária. [Os japoneses] são muito bons em transformar o cenário urbano, transformam completamente. E se você quer fazer essa transformação, você tem de ter participação popular. É uma lógica diferente dessa top-down [do Nova Luz], de cima para baixo: você vem com o projeto pronto, com os grandes urbanistas que fazem o belo traço no mapa e sem muitas vezes entender qual vai ser o resultado nisso tudo. No Nova Luz, a população não viu nenhuma das suas demandas atendidas, tanto no projeto de lei quanto no projeto urbanístico. As audiências são sempre insuficientes. Ninguém sabe como fazer isso. E mesmo que soubesse, isso duraria muito mais tempo do que uma gestão político-partidária.

Qual foi a força motriz do Nova Luz?
Foi a linha amarela do metrô, que liga o Centro à região sudoeste, que tem as pessoas de maior renda. Você tinha o metrô, os museus, uma série de investimentos públicos.

No seu livro você sugere que esse projeto já estava sendo pensado antes da gestão Serra (2005-2006).
Em 2001 já existia um consórcio formado pela Andrade Gutierrez e outras várias empresas do mercado imobiliário – Odebrecht, Camargo Corrêa, Alston. Esses grandes grupos, não só no Centro, têm gente trabalhando, procurando brechas onde possam atuar. Acredito que essa visão do Nova Luz já existia bem antes da gestão do Serra.

Como foi aprovado o instrumento de concessão urbanística no Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2002?
A concessão urbanística foi aprovada no PDE por um esforço individual de um jurista chamado Paulo Lomar. Como você aprova um instrumento se você não tem nem a limitação da área de atuação? De certa maneira, eles foram muito habilidosos em aplicar um instrumento sem ter a área de aplicação. Quando você olha o PDE, você tem no mapa as áreas de Zeis, de preempção, as operações urbanas, áreas de desapropriação, mas não tem a área de aplicação da concessão urbanística. Então não se sabia ao que ela veio. Em geral, a redação desses instrumentos urbanísticos é muito mal feita. E quando não é mal feita, ela é feita por cima, ou resumida, porque se pretende que esses instrumentos sejam regulamentados em lei específica. Aí se cria a confusão. Só o técnico que criou aquela coisa entende e pode explicar. E de instrumento em instrumento, as coisas vão sendo aprovadas.

Qual era o cerne da ideia do Lomar na concessão urbanística?
O Lomar tinha em mente que o Estado brasileiro tem o problema da morosidade, da burocracia, e tinha o problema da licitação e de o Estado ter atividades econômicas. Ele pensou: como faço o Estado se tornar mais ágil e se livrar desse monstro que é a licitação? Ele foi atrás da lei de concessões (8.987/1995), onde se entende que na concessão de obra pública o Estado pode transferir atividades públicas e operações urbanas ao privado. O privado investe e tem remuneração através de ganhos das operações. Pode, inclusive, pagar as desapropriações. Esse foi o entendimento do Lomar para criar a concessão. O [jurista Kiyoshi] Harada diz que há uma confusão conceitual. Ele diz que as concessões públicas são apenas para a melhoria das ações públicas que venham a ser desempenhadas – como água, metrô, esgoto – , e que a concessão urbanística transformaria o concessionário num mero especulador imobiliário. Foi questionada a constitucionalidade do instrumento [de concessão urbanística]. Houve várias Adins [Ação Direta de Inconstitucionalidade] e nenhum parecer dialoga, não tem nada a ver um com o outro.

O instrumento de concessão urbanística é necessário em algum caso?
É preciso debater por que instrumentos são criados. Em vez de se debater política pública, se debate a criação de instrumentos. Existe um fetiche dos legisladores e urbanistas, e esses instrumentos são criados e aprovados e não existe nenhum exercício prévio de gestão de risco quando se aplica o instrumento e de conexão desses instrumentos com a realidade. No caso da concessão urbanística, ninguém sabia o que era aquilo. Algumas pessoas confundiam a concessão com outros instrumentos do Estatuto da Cidade.

O debate é muito anterior à criação de instrumentos…
Você não vai conseguir nenhuma transformação efetiva e em grande escala se não trouxer para o debate a questão da propriedade privada, que é patrimonialista. Se você olha para o centro de São Paulo, você tem uma quantidade enorme de prédios abandonados e não se tem uma política para a ocupação deles. Nenhum partido bate de frente com esses proprietários, e muitos deles têm débitos exorbitantes de IPTU. Existe a desapropriação, mas é impossível você desapropriar para implementar, por exemplo, todos os projetos do PDE. Então precisa se conhecer uma alternativa para isso, que seja participativa, popular e que não esteja atrelada à desapropriação.

A estratégia usada na PPP de Habitação do Centro e concessão urbanística são semelhantes?
Tanto a PPP quanto a concessão urbanística seriam uma nova maneira de privatização, em que você tem uma maior segurança para o investidor privado. Se o negócio dá certo, o privado fica com o lucro; se dá errado, a população e o Estado que arquem com as consequências. Não me admira que esse novo processo com a PPP de Habitação tenha problemas com a participação popular porque é entendida, no contexto brasileiro, como algo que vai trazer mais morosidade ao processo, e logicamente vai diminuir o lucro – essa é a maneira de raciocinar do investidor privado quando se fala das PPPs, sobretudo quando envolve a participação popular.

Você disse por email que tinha uma novidade sobre o tema para contar.
Existe um parlamentar no Congresso Nacional que já está há mais de um ano tentando alterar a lei de desapropriações. Na última vez a Dilma vetou as alterações dele, mas estão tentando novamente passar a concessão urbanística alterando a lei de desapropriações. Eles tentam mascarar com nomes diferentes, com artigos, vão mudando coisas aqui e acolá em artigos. E isso está acontecendo em todo lugar. Já conseguiram passar a concessão urbanística em várias cidades brasileiras, não em lei específica, mas em alguns planos diretores. Há frentes trabalhando nisso todos os anos. Tem um relator que é o [deputado federal] João Carlos Bacelar [PR-BA], mas quem está por trás é o [deputado federal] Eduardo Cunha [PMDB-RJ]. Já tem algumas tentativas de medidas provisórias que estão tentando alterar a lei de desapropriação. Tentativa após tentativa, vão se enfraquecendo [as resistências]. Na última tentativa dele não tem mais nenhum ministério contra, a não ser o da Justiça. Então, para a presidenta vetar, acaba sendo mais difícil. [Algumas semanas após esta entrevista, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.873, cujo artigo 49 é o artigo “mascarado”, como diz Souza. Saiba mais no fim desta reportagem*].

Você sofreu retaliação por conta do seu livro?
É a pergunta mais sensível de se fazer nessa fase atual na minha vida, com dois anos de Japão já longe do Brasil. Não vou negar: foi um problema para mim. Tem o lado positivo, você acaba ganhando aliados, fazendo muitas amizades, principalmente daqueles que são afetados pelo projeto. Mas sem dúvida nenhuma trouxe muitas inimizades dentro do poder público, principalmente pelo fato de eu citar nomes. O lado negativo também inclui represálias.

Sua ida para o Japão teve a ver com isso?
(silêncio) Sim e não. Vir para o Japão estudar, ter uma carreira internacional era algo que eu almejava há algum tempo. Eu tenho muito a agradecer a esses meus dez anos na prefeitura. Mas calhou de eu não estar numa situação muito boa no poder público e querer estudar fora.

* Após a entrevista por telefone, Felipe Francisco de Souza enviou um email ao AG com detalhes sobre o artigo 49, “contrabandeado”, e aprovado, para dentro da Lei 12.873:

“Conforme dito em minha entrevista, aqui estão informações referentes aos caminhos da concessão urbanística não apenas em âmbito municipal-estadual, mas também federal. O deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que possui processo parlamentar por irregularidades na Companhia de Habitação Fluminense – aberta em março de 2013 –, e recente arquivamento de inquérito que apurava acusações de advocacia administrativa e tráfico de influência – incluindo relações com a empreiteira Odebrecht – vem nos últimos meses tentando aprovar Medidas Provisórias para alterar o Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, que dispõe sobre desapropriações por utilidade pública e por concessionários. Resumidamente, na primeira vez ele pretendeu aprovar a concessão urbanística em lei federal e na segunda, e atual tentativa, ele “escondeu” o instrumento para que parcerias público-privadas com concessão urbanísticas tornem-se viáveis nacionalmente. Em ambas tentativas o Ministério da Justiça optou pelo veto da presidenta da República, porém na primeira vez, com o apoio de três Ministérios, e na segunda, e atual, sem o apoio deles. Ambos vetos foram fundamentados na minha publicação, “A Batalha”, mas pelo poder de influência que tal parlamentar possui, provavelmente ele terá sucesso em uma terceira tentativa.”

10 – Apêndice 3 – Entrevista com Simone Gatti, arquiteta e urbanista

‘O rito do processo participativo vai contra o calendário político e o calendário econômico’

A arquiteta e urbanista Simone Gatti já viu isso acontecer uma vez e está vendo pela segunda: um projeto urbanístico de grande impacto sendo imposto à cidade sem participação popular – participação que é obrigatória, segundo o artigo 2, inciso II do Estatuto da Cidade, que é lei federal. Primeiro foi no Projeto Nova Luz, durante a gestão de Gilberto Kassab (PSD). Simone, juntamente com moradores e comerciantes das regiões da Luz e Santa Ifigênia, conseguiram forçar a criação do Conselho Gestor (também obrigatório por lei) e, por meio dele, conseguiram barrar o projeto que deixaria milhares de desalojados, fecharia comércios consolidados e geraria um processo certo de gentrificação no centro da cidade.

Agora, no governo de Fernando Haddad (PT), a luta volta ao mesmo pé: a chamada Parceria Público-Privada de Habitação do Centro, um projeto do governo estadual em parceria com o municipal, federal e com empresas privadas para a construção de 20 mil moradias populares, também ameaça a população local com desalojamentos compulsórios e fim de negócios produtivos. Conforme aponta Simone, os dois projetos são muito semelhantes no que têm de pior, como a concessão ao setor privado, pelo Estado, do direito de desapropriar e fazer dinheiro com isso. A diferença entre o Projeto Nova Luz e a PPP de Habitação é que, enquanto o primeiro se restringia a 45 quarteirões contíguos, o segundo prevê a desapropriação de mais de 900 imóveis em pelo menos seis bairros do centro da capital. A seguir, confira a entrevista exclusiva que Simone Gatti concedeu ao Arquitetura da Gentrificação, e entenda por que, e como, a história se repete.

Como foi sua participação na resistência ao Projeto Nova Luz?
A partir da minha pesquisa sobre os possíveis processos de gentrificação no Projeto Nova Luz, formei uma associação de moradores na região, a AMOALUZ, juntamente com uma moradora do bairro, a [jornalista] Paula Ribas. Não havia nenhuma mobilização, na época, dos moradores em relação ao projeto. A única reação era a dos comerciantes da Santa Ifigênia, que se mobilizaram tentando barrar a lei da Concessão Urbanística. Formamos a associação e a partir disso entramos em contato com os movimentos de moradia do Centro e iniciamos o processo de pressão popular para formar o Conselho Gestor das Zeis do Nova Luz, obrigatório por lei. Sem esta mobilização feita junto à Secretaria Municipal de Habitação [Sehab] e à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano [SMDU] o Conselho não teria sido formado. Foi a atuação da sociedade civil nesse Conselho Gestor que possibilitou o início de um controle social no processo, que posteriormente resultaria na paralisação do projeto Nova Luz.

A formação do Conselho Gestor de Zeis é obrigatória pelo Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2002. O PDE diz quando tem de ser formado?
Não, a legislação é vaga em relação a isto, e esta é uma das coisas que precisam ser revistas agora na revisão do PDE. Mas no Termo de Referência do Projeto Nova Luz havia um cronograma que dizia que o Conselho Gestor tinha de ser formado no início das discussões sobre o projeto, e este cronograma não estava sendo cumprido. O conselho precisa ser formado não só para aprovar o Plano de Urbanização da Zeis mas, sobretudo, para elaborá-lo.

A participação de vocês era efetiva no conselho?
Trabalhamos a partir das diretrizes do projeto. O trabalho de elaboração do Plano de Urbanização da Zeis não se iniciou com o Conselho Gestor, ele foi trazido pronto para o Conselho Gestor aprovar, o que já é um equívoco. Nosso posicionamento  então foi trabalhar na minimização de impactos e redução de danos, fazer com que a partir daqueles critérios estabelecidos, que não eram passíveis de mudança, garantíssemos a permanência da população residente, o atendimento prioritário para quem mora lá e a destinação das habitações para a demanda real, que são as famílias com renda de 0 a 3 salários mínimos.

Com quais problemas tiveram de lidar?
Todo o projeto foi feito sem cadastro [dos moradores que seriam afetados]. Foi elaborado com base em uma pesquisa amostral. Esta foi a principal pauta no início das reuniões do Conselho Gestor. Exigimos que fosse feito um cadastro que serviria como garantia de permanência da população e atendimento habitacional. Conseguimos desenvolver um cadastro, elaborado pela Sehab, onde descobrimos que mais de 80% da população na área do Projeto Nova Luz possuía renda inferior a três salários mínimos. Todo o  Plano de Reurbanização da Zeis foi reajustado a partir desse cadastro e conseguimos avançar dentro do Conselho Gestor, inclusive ampliando o percentual de unidades de Habitação de Interesse Social (HIS) de 50% para 80%, de acordo com a demanda existente. Conseguimos também, após um longo debate, retirar o prédio da Ocupação Mauá das demolições previstas, já que ali seria construído um centro de entretenimento. O prédio da Mauá não estava no perímetro das Zeis, mas mesmo assim conseguimos pactuar esta alteração no projeto.

Você vê semelhanças entre o Projeto Nova Luz e a atual PPP de Habitação do Centro?
Assim que foi lançado [o projeto da PPP] eu pensei: é o projeto Nova Luz na cidade toda. Isso antes de sair o decreto de desapropriação. Quando saiu, isso só se confirmou. Foi um projeto discutido dentro de gabinete, sem nenhum conhecimento da população afetada e sem nenhum envolvimento formal da população em processos e projetos, o que leva a ver as semelhanças com o Nova Luz. O Estatuto da Cidade e o Plano Diretor preveem a obrigatoriedade da participação da população, tanto para grandes projetos como para intervenções em áreas de ZEIS, mas ainda de forma vaga. Isso ainda não foi regulado de maneira eficaz. De qualquer forma, não é com uma audiência pública que você efetiva a participação. Ela se efetiva em um processo amplo durante todo o projeto.

Falando ainda em semelhanças, o instrumento de concessão urbanística usado no Projeto Nova Luz e a estratégia de desapropriação pelo setor privado previsto na PPP de Habitação são parecidos?
O instrumento da PPP tem muitas semelhanças com a concessão urbanística. Na prática os processos são muito semelhantes. Na forma da PPP como está, você dá ao concessionário o direito de realizar aquilo que é atribuição pública, fazer as desapropriações e lidar diretamente com o privado, fazer negociações. Quando o concessionário atua como intermediário entre o poder público e o cidadão, o poder público perde totalmente o controle sobre como se dá esse processo. Aí há a chance de serem utilizadas os tais “cheques-despejos”, que se tornou prática corrente na política municipal de São Paulo.

Em termos de projeto urbanístico, o que você acha da PPP tal como foi desenhada pelo Urbem?
O problema é ainda ver um planejador urbano, seja um gestor público ou um escritório de urbanismo, como o Urbem, tratar a cidade como desenho urbano e esquecer a questão do direito à cidade. Todo um planejamento é desenvolvido à revelia de quem vive na cidade, do direito sobre aquele lugar e apresentado como um projeto pronto. Os argumentos do Urbem são os mais equivocados. O projeto urbano começa com o contato com a população. As entrevistas que o Urbem fez foi pensando em demandas futuras de um projeto ideal, e não nas necessidades da população que vive lá*. No decreto de desapropriação é possível ver o absurdo que é lançar um decreto sem pesquisa fundiária, onde centenas de famílias estão sujeitas a ter que sair das suas casas. Qual o sentido disso em um projeto de habitação social?

O que leva um decreto de desapropriação a listar uma maioria de imóveis e terrenos em pleno uso?
Nas conversas que ouvi do Philip Yang [diretor do Instituto Urbem] e Milton Braga [arquiteto do escritório MMBB e um dos responsáveis pelo projeto da PPP feito pelo Urbem], ficou claro que o processo de como fizeram a escolha dessas áreas foi muito parecido com o do Projeto Nova Luz. É o projeto feito de helicóptero. A análise é feita através do Google Maps, voos de helicóptero contratados e pesquisa de campo superficial. Os critérios utilizados por eles foram critérios estéticos de uma cidade aparentemente degradada e isso está vinculado a uma questão ideológica. Grande parte da moradia de determinadas áreas da região central da cidade são ocupadas por população de baixa renda. Quando você elenca essa ocupação como uma ocupação subutilizada, feia, mal cuidada, com pouca estrutura física você a considera subutilizada?

Quais os maiores problemas dessa PPP?
São muitos, mas acho que o principal é não terem respeitado a determinação legal que é a participação popular através do Conselho Gestor. A única forma de você conseguir garantir um controle social das intervenções desse porte é através do Conselho Gestor, no caso das Zeis. Outro ponto é: quem é que vai ocupar esses imóveis a serem construídos? Vão ser ocupados, na sua maioria, por pessoas que moram fora do Centro! Isso desconsidera toda a população que já mora no centro de São Paulo. Eles falam de cadastro dos novos moradores, da demanda que vai ocupar, mas não falam do cadastro de quem vive nessas áreas para garantir o atendimento prioritário a essa população. Outro grande problema é que este projeto vai utilizar todo o estoque habitacional da ZEIS 3 (ZEIS de áreas centrais) para construir habitação a ser vendida, comercializada via financiamento, o que contraria a real necessidade da população de baixa renda que vive em áreas centrais, que é uma população com renda inferior a três salários mínimos, que não consegue entrar no sistema de financiamento habitacional e que precisa de outro tipo de oferta, como a Locação Social, onde você paga o aluguel de acordo com a sua renda e ainda tem a facilidade da mobilidade, característica das populações mais pobres, que trabalham com mercado informal. O que você acha que vai acontecer com habitações ‘compradas’ por estas pessoas? Serão a curto prazo repassadas para famílias com maior poder aquisitivo, claro. E quem necessita realmente voltará a ocupar as formas precárias de habitação. É subsídio público destinado, indiretamente, para a classe média!

O que você acha que pode acontecer agora?
Como aconteceu no Projeto Nova Luz, acho muito difícil que essa PPP vingue, pelo menos da forma como ela está. A sociedade está se fortalecendo muito, está amplamente engajada, com apoio do Ministério Público e da Defensoria [Pública] em relação às intervenções que vão contra o direito à cidade. Cada desapropriação dessas pode gerar um embate jurídico muito grande. Isso não aconteceria se fosse um projeto elaborado em conjunto com a população, que começasse em territórios menores. O problema é que esse rito do processo participativo vai contra o calendário político e o próprio calendário econômico das grandes incorporadoras. Tempo é dinheiro, e participação leva tempo, rompendo com a lógica do capital.

*Em pelo menos duas apresentações públicas, o diretor do Instituto Urbem, Philip Yang, afirmou que as pesquisas do instituto para a elaboração do projeto urbanístico da PPP contataram pessoas de movimentos sociais. O Arquitetura da Gentrificação quis entrevistar as lideranças dos movimentos contatados para entender a abordagem feita no estudo. Para isso, entrou em contato com o Instituto Urbem e com Luciana Aguiar, sócia-diretora da Plano CDE, empresa contratada para realizar a pesquisa. Nenhum dos dois, porém, aceitou dar informações. Luciana argumentou que a empresa segue normas éticas que impedem a divulgação dos nomes dos entrevistados.

** Confira aqui a carta aberta “Questões para a PPP da ‘Casa Paulista’ para o centro de São Paulo, assinada por arquitetos, urbanistas, movimentos sociais de moradia, entidades, defensoria pública, academia e outros atores da sociedade civil. E leia aqui a manifestação encaminhada pelos mesmos atores sociais aos gestores públicos com comentários e sugestões a pontos específicos da PPP.


11 – Apêndice 4 – Bastidor da reportagem: secretismo e truculência do Estado

Falta de transparência e de participação pública são marcas de ações e projetos das duas secretarias de Habitação, tanto a do estado quanto a do município – esta comandada por José Floriano de Azevedo Marques Neto.

Quando esta reportagem sobre a PPP começou a ser sistematizada, após cinco meses de apuração, o AG entrou em contato com a assessoria de imprensa da Sehab estadual solicitando informações específicas sobre o projeto, além de uma entrevista exclusiva, em vídeo, com o subsecretário Reinaldo Iapequino.

Do primeiro contato com a assessoria em 19 de novembro até o primeiro anúncio sobre a revogação do decreto, feito pelo secretário Silvio Torres à jornalista Sonia Racy e publicado no jornal “O Estado de S. Paulo” em 22 de novembro, a assessoria indicou que agendaria, sim, a entrevista com Iapequino. No mesmo dia 22, uma sexta-feira, o AG fez um breve contato telefônico com a assessora da Sehab Valeria Scheide para confirmar se o decreto havia mesmo sido revogado. Ela disse que precisaria buscar mais detalhes e sugeriu que a reportagem encaminhasse as perguntas a serem respondidas. Um email com seis questões foi enviado no mesmo dia.

Em 25 de novembro, segunda-feira, o AG enviou novo email perguntando sobre as respostas. O retorno da assessoria, na mesma data, foi o seguinte:

email

Depois disso, o AG tentou contato via email e telefonemas, mas não conseguiu retorno da assessora. Só depois de a reportagem falar com a secretária direta de Iapequino e explicar a dificuldade para conseguir informações públicas via assessoria de imprensa é que Valeria, finalmente, resolveu falar. Confira a seguir o áudio em que o AG explica à secretária de Iapequino, em 27 de novembro, que há dias tenta contato com Valeria, mas sem sucesso. Na sequência, ouça a conversa da reportagem com a própria assessora, logo em seguida, e entenda como o secretismo da Sehab estadual se manifesta no departamento que deveria ser a ponte entre a informação pública e o cidadão. Entenda também como a tergiversação, o uso de informações contraditórias e a interrupção sistemática do interlocutor são estratégias usadas para garantir à informação pública um status privado.

*Texto atualizado na tarde de quinta-feira, 12/12, para inclusão de informações. 

Leia também: 
Haddad e Alckmin juntos para riscar do mapa Favela do Moinho

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Capital imobiliário e poder público: ‘a resistência é política e se dá nas ruas’ https://gentrificacao.reporterbrasil.org.br/capital-imobiliario-e-poder-publico-a-resistencia-e-politica-e-se-da-nas-ruas/ Wed, 06 Nov 2013 16:32:13 +0000 https://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/?p=446

Por Sabrina Duran

Na segunda parte da entrevista ao Arquitetura da Gentrificação (a primeira parte pode ser vista aqui), a urbanista Ermínia Maricato fala sobre as consequências do “casamento” entre capital imobiliário, indústria automotiva e poder público. Casamento que, segundo ela, tem levado as cidades a um abismo que exaure recursos públicos em “obras imobiliárias”, castiga o desenho urbano e priva a população do direito à cidade.

A entrevista é publicada alguns dias depois da denúncia de corrupção envolvendo servidores públicos da gestão do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD) e construtoras, num esquema de pagamento de propina que, estima-se, gerou um rombo de R$ 500 milhões nos cofres do município. Mais uma prova de que o casamento do qual fala a urbanista é daninho não só naquilo que se vê dele, mas principalmente no que não está público.

Citando as jornadas de manifestações populares de junho contra o aumento da tarifa dos transportes, Ermínia Maricato propõe a desconstrução como solução para problemas estruturais: a desconstrução do modelo de concessão e da tarifa do transporte público e, no caso da habitação, a desconstrução da hegemonia da propriedade privada que impede, por exemplo, que prédios abandonados, especialmente os que estão no centro histórico da capital paulista, se transformem em habitação social. Os proprietários desses edifícios, muitas vezes grandes devedores de IPTU, quase nunca são acionados pela Justiça. “Tem de aplicar a lei”, diz Maricato, referindo-se aos instrumentos legais específicos que garantem a função social da propriedade. Segundo ela, no fim das contas a luta não é jurídica, mas política, e a resistência, garante, não se dá nos espaços institucionais, e sim nas ruas.

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Haddad e Alckmin juntos para riscar do mapa Favela do Moinho https://gentrificacao.reporterbrasil.org.br/haddad-e-alckmin-juntos-para-riscar-do-mapa-favela-do-moinho/ https://gentrificacao.reporterbrasil.org.br/haddad-e-alckmin-juntos-para-riscar-do-mapa-favela-do-moinho/#comments Fri, 18 Oct 2013 16:12:57 +0000 https://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/?p=265 Apesar de o prefeito paulistano ter prometido durante a campanha eleitoral que a comunidade seria regularizada, reurbanizada e que seus moradores lá permaneceriam, administrações municipal e estadual trabalham juntas para eliminá-la. Após mais de dois meses de apuração, o Arquitetura da Gentrificação mostra quais os interesses sobre a área ocupada pela última favela localizada no centro de São Paulo

Por Sabrina Duran e Fabrício Muriana

À entrada da Favela do Moinho, o recado da comunidade aos gestores públicos. Foto/Associação Moinho Vivo

À entrada da Favela do Moinho, o recado da comunidade aos gestores públicos. Foto: Movimento Moinho Vivo

A Favela do Moinho está sob disputa acirrada desde que Gilberto Kassab (PSD) assumiu a prefeitura de São Paulo, em 2006. Naquele ano, o então prefeito José Serra (PSDB) abandonou a administração municipal para disputar as eleições ao governo do Estado. Kassab, seu vice e afilhado político, assumiu a cadeira e, em 2007, como primeira medida de disputa pela área onde está a Favela do Moinho, entrou com uma ação para comprar o terreno pertencente a dois particulares. Esta ação de compra geraria, automaticamente, a desapropriação do terreno, e a comunidade teria que sair dali.

Desde então, os moradores viram a disputa judicial tornar ainda mais difícil sua permanência na área. Uma permanência marcada por esgoto a céu aberto, por falta de água encanada, de energia elétrica e de pavimentação, por violência policial e pela total omissão do poder público.

Em 2011 e 2012, últimos dois anos do segundo mandato de Kassab, a Favela do Moinho sofreu dois grandes incêndios, que eliminaram mais de um terço dos barracos da comunidade e deixaram mortos, feridos e milhares de desabrigados.

No ano passado, quando ainda era candidato ao governo municipal, o atual prefeito Fernando Haddad (PT) visitou o Moinho e fez uma promessa aos seus moradores: se eleito, resolveria a questão fundiária da comunidade e reurbanizaria a favela, concretizando o desejo da maioria de permanecer ali. A promessa foi gravada em vídeo e veiculada em TV aberta (veja a parte 3 desta reportagem) como propaganda de campanha.

No cargo, porém, Haddad deu continuidade aos planos de seu antecessor de erradicar a Favela do Moinho.

Nos últimos meses, tanto o governo municipal quanto o governo estadual de Geraldo Alckmin (PSDB) vêm tornando a vida dos moradores especialmente difícil, seja com incursões ostensivas da PM e da Guarda Civil na comunidade, seja com o descumprimento do compromisso de realizar saneamento básico na área ou com o oferecimento, pela prefeitura, de bolsa-aluguel para quem está na favela se mudar de lá, numa tentativa, segundo moradores e movimentos de moradia, de esvaziar a comunidade e minguar a resistência local.

Em reportagem de maio de 2013 feita pela “Agência Pública” sobre o Moinho, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação afirmou: a administração Haddad pretende erradicar a favela.

A questão é: por que Haddad está empenhado em eliminar a favela que prometeu regularizar e reurbanizar? Por que ele está disposto a assumir o ônus político e moral do descumprimento de uma promessa tão estratégica? Quais os interesses por trás da sua decisão? Quais os planos para a área da favela que não incluem as pessoas que vivem ali?

Após mais de dois meses de apuração, o Arquitetura da Gentrificação chegou a algumas respostas (parte 9 deste texto). Acompanhe agora esta “reportagem-linha do tempo” contando a história da Favela do Moinho, os desafios que a comunidade vem enfrentando e quem está interessado naquele pedaço de terra que, de acordo com pesquisas, é o terceiro bairro, de uma lista com 140, com maior índice de valorização dos preços dos imóveis entre 2008 e 2011: 182%. O texto está dividido em 15 partes, recheadas de documentos, mapas, vídeos e entrevistas em áudio. Use o índice abaixo para navegar nesta megarreportagem.

1. Há quase três décadas
2. Os incêndios
3. Haddad e a promessa de regularizar o Moinho
4. Primeiro grande ato da comunidade
5. Novas promessas
6. A derrubada do muro
7. Começa o silêncio do poder público
8. Aumentam as incursões da polícia
9. PPP, CPTM e Secretarias
10. CPTM primeiro
11. Esconde-esconde da PPP
12. Mapeamento e clareza
13. Ou vai ou racha. Racha
14. Arco Tietê: sai o Moinho, entra o mercado
15. Novo laudo, nova aposta

1. Há quase três décadas
Cravada entre duas linhas de trem da Companhia Paulista de Trens Paulistanos (CPTM) e no coração da cidade, o Moinho é a última favela do centro da capital paulista. Sua história começou há cerca de 25 anos, com a ocupação do terreno sob o viaduto Engenheiro Orlando Murgel, onde ficava o antigo Moinho Matarazzo, que lhe rendeu o nome.

Favela do Moinho: erguida entre duas linhas de trem da CPTM. Na ponta à extrema direita da favela ainda se vê o edifício que foi demolido após o primeiro grande incêndio (2011). Foto/Google Maps

Favela do Moinho: erguida entre duas linhas de trem da CPTM. Na ponta à extrema direita da favela ainda se vê o edifício que foi demolido após o primeiro grande incêndio (2011). Clique na imagem para navegar pelo mapa. Imagem: Google Maps

Antes dos dois grandes incêndios de 2011 e 2012, a comunidade chegou a abrigar 1.200 famílias – cerca de 5 mil pessoas. O número hoje, após a destruição dos barracos pelas chamas, é de 480 famílias. Alessandra Moja, de 29 anos, é uma das lideranças da favela e integrante do Movimento Moinho Vivo, organização política local composta por moradores e parceiros da comunidade. Há 18 anos ali, é uma das moradoras mais antigas entre os atuais 1.900 habitantes da favela. É ela quem guia nossa reportagem pela história passada e recente do Moinho, além de Caio Castor, também morador e integrante do movimento e realizador do Projeto Comboio, juntamente com Flávia Lobo. Desde 2012, Caio e Flávia desenvolvem um projeto independente de pesquisa, urbanismo e comunicação na comunidade.

Em 2007, a tentativa de desapropriação do terreno pela gestão municipal de Kassab, com depósito de indenização em dinheiro e pedido de posse provisória da terra, acrescentou mais um elemento à disputa pela área. Originalmente, a área do Moinho pertencia à Rede Ferroviária Federal S/A. Mas, em 1999, por conta de uma dívida de IPTU, o terreno da empresa foi a leilão. Nessa época, a comunidade já ocupava o local há pelo menos uma década. No leilão, o empresário Ademir Donizetti Monteiro e a empresa Mottarone Serviços de Supervisão, Montagens e Comércio Ltda arremataram o terreno, mas não o registraram. Dessa forma, as terras continuaram em nome da Rede Ferroviária, que foi à falência um tempo depois, tendo seus bens e dívidas repassados ao domínio da União.

A União, por sua vez, pediu judicialmente a anulação do leilão. A ação ainda corre na Justiça, após ter sido julgada improcedente em primeira instância e a Rede Ferroviária Federal ter entrado com recurso. Assim, prefeitura, Monteiro e Mottarone, Rede Ferroviária Federal e a União estão na disputa pelo terreno do Moinho.

Diante de cenário tão frágil, os moradores da favela resolveram se proteger juridicamente também. Em 2008, com a assessoria jurídica popular do Escritório Modelo da Pontifícia Universidade Católica (PUC), a Associação de Moradores da Favela do Moinho entrou com uma ação coletiva de usucapião. A ação, de acordo com o escritório, garante o direito à propriedade às pessoas que utilizam um imóvel particular como sua moradia por mais de cinco anos, desde que não tenham outro imóvel e as famílias sejam de baixa renda.

Em abril de 2008, o juiz federal José Marcos Lunardelli deu decisão provisória assegurando a posse para os moradores até o julgamento final da ação, que não tem data para acontecer. Com isso, os moradores talvez estivessem seguros de que permaneceriam na Favela do Moinho sem serem ameaçados de despejo. Ou talvez não.

2. Os incêndios
Em 2011, a Favela do Moinho foi atingida por uma tragédia. Na manhã de 22 de dezembro, um fogo de grandes proporções tomou o antigo edifício do Moinho Matarazzo, dentro e em torno do qual viviam 450 famílias da favela – cerca de 1.800 pessoas. Todas elas ficaram desabrigadas. Um terço das moradias da comunidade foi eliminado. Na época, a imprensa noticiou a morte de duas pessoas no incêndio. Os moradores, porém, acreditam que foram pelo menos 30.

Incêndio de 2011 destruiu 1/3 das casas da favela. Há suspeitas de que fogo foi proposital. Foto/Pragmatismo Político

Incêndio de 2011 destruiu um terço das casas da favela. Há suspeitas de que o fogo foi proposital. Foto: Pragmatismo Político

Embora o edifício fosse de alvenaria, ao contrário dos barracos de madeira que ocupam a maior parte da comunidade, o fogo se espalhou rapidamente pelo prédio. Essa é uma das principais estranhezas que Alessandra Moja aponta sobre o caso: “desde quando tijolo pega fogo?”, pergunta, reafirmando que a velocidade e intensidade com que as chamas se espalharam não são explicadas por nenhuma causa espontânea ou natural.

Alegando que o fogo abalou a estrutura do prédio e que havia risco de desabamento, o prefeito Gilberto Kassab decidiu pela implosão do que havia sobrado dele. Imediatamente, ainda em dezembro, a prefeitura conseguiu um documento que garantia ao município a posse de parte do imóvel.

Dez dias depois do incêndio, em 1º de janeiro de 2012, pouco depois das cinco da tarde e a um custo de R$ 3,5 milhões, 800 quilos de dinamite instalados no edifício foram detonados.

Quando a nuvem de poeira formada pela implosão baixou, moradores da favela, jornalistas, curiosos e técnicos que assistiam à operação viram, com surpresa, que o edifício havia ficado quase inteiro em pé. Os 800 quilos de explosivos, considerados por muitos especialistas um excesso naquele caso, não foram suficientes para levar abaixo o antigo prédio do Moinho Matarazzo. Em entrevista à imprensa, Kassab deu sua explicação para o fiasco da implosão que, em sua conta, foi nota 10. O que ficou em pé do prédio – quase tudo – foi demolido posteriormente por tratores e escavadeiras.

A medida seguinte de Gilberto Kassab foi construir um muro de concreto armado de 55 metros de comprimento e 50 centímetros de base construído de fora a fora, dividindo a favela ao meio e isolando os moradores do terreno onde ficavam os barracos atingidos pelo incêndio. Além de impedir que os moradores reocupassem a área destruída, a construção obstruiu uma importante rota de fuga no caso de um novo incêndio. Cercados por duas linhas férreas em uso e pelo muro de concreto de Gilberto Kassab, os moradores do Moinho passaram a contar com uma única rota de fuga, situada sob o viaduto Engenheiro Orlando Murgel, com entrada pela rua Dr. Elias Chaves, por onde o caminhão dos bombeiros não consegue passar.

Laudo do corpo de bombeiros emitido em outubro de 2012 aponta a “necessidade imediata de ser criada uma rota de fuga alternativa (…) a qual propicie (…) o acesso operacional das viaturas de combate a incêndios e das equipes do corpo de bombeiros”. A rota sugerida no laudo seria pela rua Silva Pinto, cujo trajeto conduz à parte de trás do muro construído por Kassab.

Com 55 metros de extensão, o muro erguido por Kassab divide a favela em duas: de um lado, os escombros de cinza dos barracos destruídos em 2011 pelo primeiro grande incêncio e o entulho do prédio demolido no mesmo ano. Do outro lado, as casas que não foram atingidas pelas chamas. Esta parte do muro que se vê é a única que pode ser derrubada para criação da rota de fuga, já que o restante da estrutura serviu de apoio às novas casas construídas. Foto/Associação Moinho Vivo

Com 55 metros de extensão, o muro erguido por Gilberto Kassab divide a favela em dois: de um lado, os escombros de cinza dos barracos destruídos em 2011 pelo primeiro grande incêncio e o entulho do prédio demolido no ano seguinte. Do outro lado, as casas que não foram atingidas pelas chamas. Esta parte do muro que se vê é a única que pode ser derrubada para criação da rota de fuga, já que o restante da estrutura, hoje, serve de apoio às novas casas construídas. Foto: Movimento Moinho Vivo

Um ano depois da emissão do laudo, a rota de fuga ainda não havia sido construída, e os equipamentos do Programa de Prevenção contra Incêndio (Previn) em assentamentos precários, criado pela gestão Kassab em 2010, não tinham sido instalados e distribuídos.

Em 17 de setembro de 2012, outro incêndio atingiu a favela do Moinho, destruindo cerca de 80 barracos, matando uma pessoa e deixando pelo menos 300 desabrigadas. Um total de 810 famílias que ficaram sem moradia, tanto no primeiro quanto no segundo incêndio, foram cadastradas pela prefeitura para receber uma bolsa-aluguel de R$ 450 por família (valor de 2013). Com esse dinheiro, os desabrigados do Moinho tiveram de se mudar para moradias precárias, favelas ou cortiços, longe do centro da cidade. Além do valor insuficiente, os atrasos constantes no pagamento da bolsa-aluguel fizeram que muitas pessoas fossem despejadas de suas casas. Algumas delas voltaram ao Moinho. Haddad não só herdou os atrasos de Kassab como os perpetuou em sua gestão.

3. Haddad e a promessa de urbanizar e regularizar o Moinho
Visto como potencial contraponto a Kassab e suas políticas habitacionais excludentes, Fernando Haddad começou sua campanha eleitoral de 2012 dando prioridade aos moradores da última favela do centro da cidade mais rica da América Latina, ignorados há décadas pelo poder público. Em visita à comunidade do Moinho, o candidato entrou na casa de Zeza, moradora local, e gravou um vídeo que se tornou propaganda política de sua candidatura. À dona Zeza e a todos os habitantes da comunidade, Haddad prometeu trabalhar para levar saneamento básico e regularização fundiária para a área (veja no minuto 2:00 do vídeo abaixo).

4. Primeiro grande ato da comunidade
A promessa foi feita, mas não foi cumprida até o décimo mês do primeiro ano de mandato do petista. Em 5 de julho de 2013, os moradores da Favela do Moinho organizaram o primeiro grande ato da comunidade para pedir que Haddad honrasse o compromisso firmado. Em marcha pelas ruas do centro da cidade, eles caminharam da favela até a sede da prefeitura, onde uma comissão de negociação já os esperava. Funcionários da administração municipal souberam do protesto de antemão por meio do Facebook da comunidade e pela imprensa, e por isso ficaram a postos.

Moradores do Moinho em marcha pelas ruas do centro da cidade no primeiro grande ato da comunidade. Foto/Associação Moinho Vivo

Moradores do Moinho em marcha pelas ruas do centro da cidade no primeiro grande ato da comunidade. Foto: Movimento Moinho Vivo

Foto/Associação Moinho Vivo

Foto: Movimento Moinho Vivo

Foto/Associação Moinho Vivo

Foto: Movimento Moinho Vivo

Foto/Associação Moinho Vivo

Foto: Movimento Moinho Vivo

Projeção feita por moradores na fachada do prédio da Prefeitura de São Paulo. Foto/Associação Moinho Vivo

Projeção feita por moradores na fachada do prédio da Prefeitura de São Paulo. Foto: Movimento Moinho Vivo

Lideranças da favela foram recebidas pelo secretário municipal de Habitação, José Floriano, e pelo secretário de Relações Governamentais, João Antonio da Silva Filho. De saída, Floriano ofereceu “um apartamento que vale R$ 150 mil” fora do Moinho e indenização aos moradores (veja no minuto 5:12 do vídeo abaixo).

As lideranças não aceitaram e reafirmaram a vontade da comunidade de permanecer onde está.

A derrubada do muro de Gilberto Kassab e a construção da rota de fuga, implantação de sistema de água, luz e esgoto, coleta de lixo e a execução do Previn, o programa de prevenção a incêndios, entre outras exigências, foram demandas básicas apresentadas nesse primeiro encontro entre lideranças da favela e o poder público. As lideranças citaram à comissão da prefeitura o laudo de 2012 dos bombeiros recomendando a criação da rota de fuga. Informaram também que o mesmo documento deu base à determinação do juiz Domingos de Siqueira Frascino, que decidiu, em 13 de março de 2013, que o município teria um mês para construir a rota.

Em 13/3/2013, o juiz Domingos de Siqueira Frascino determina que o poder público abra rota de fuga na Favela do Moinho em até um mês

Em 13 de março de 2013, o juiz Domingos de Siqueira Frascino determina que o poder público abra rota de fuga na Favela do Moinho em até um mês

Na reunião ficou decidido, a pedido dos moradores, que a Secretaria de Habitação (Sehab) se comprometia a convidar todos os órgãos responsáveis por implementar as demandas apresentadas a visitarem o Moinho em 11 de julho. Logo depois do encontro, a assessoria de Fernando Haddad ligou para Alessandra Moja, liderança do Moinho, e marcou uma reunião entre a comunidade e o prefeito para a manhã de 12 de julho, na sede da prefeitura.

Em 11 de julho, como combinado, foram à Favela do Moinho José Floriano, o então subprefeito da Sé Marcos Barreto, o secretário-adjunto de Relações Governamentais José Pivato e uma comissão formada por Defesa Civil e Bombeiros. A visita, segundo os gestores públicos, teve como objetivo visualizar as reivindicações feitas dias antes na prefeitura e buscar meios para efetivá-las. Aos moradores presentes no encontro, o secretário José Floriano afirmou que apenas em 10 de agosto estabeleceria uma data de início das obras.

O secretário municipal de Habitação, José Floriano, em visita ao Moinho em 11 de julho. Foto/Associação Moinho Vivo

O secretário municipal de Habitação José Floriano em visita ao Moinho em 11 de julho. Foto: Movimento Moinho Vivo

Visita da Defesa Civil em 11 de julho. Foto/Movimento Moinho Vivo

Visita da Defesa Civil em 11 de julho. À esquerda, os moradores Caio Castor e Alessandra Moja. Foto: Movimento Moinho Vivo

Favela do Moinho recebe secretário da Habitação. Do Passa Palavra, no Vimeo.

5. Novas promessas
Na reunião com Haddad no dia seguinte, os moradores voltaram a falar das demandas básicas e apresentaram o laudo dos bombeiros sobre a necessária rota de fuga. Na ocasião, o prefeito pareceu ter entendido a urgência do pedido e prometeu a derrubada do muro para 15 de julho, dali três dias. Outro compromisso assumido por Haddad a pedido dos moradores foi a criação de um grupo de trabalho formado por membros da prefeitura e lideranças da favela. O grupo iria discutir, de modo frequente, o andamento das melhorias na comunidade.

O prefeito também se comprometeu a manter os moradores na ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) onde está inserida a Favela do Moinho (ZEIS 3 – C009 (SE)). As áreas de ZEIS têm perímetro delimitado, são destinadas à reurbanização, regularização fundiária e construção de habitação de interesse social, e são regidas por legislação específica (Decreto 44.667/2004). Com essa promessa, Haddad descartou a possibilidade de retomada da oferta que havia sido feita por Kassab, de transferir os moradores do Moinho para habitação permanente a ser construída perto da ponte dos Remédios, na Zona Oeste da cidade.

A reunião com o prefeito foi registrada em vídeo pelas lideranças da favela.

Moradores do Moinho em reunião com Fernando Haddad. À direita do prefeito, o Secretário Municipal de Habitação, José Floriano; à esquerda, o Secretário de Relações Governamentais, João Antonio da Silva Filho. Foto/Associação Moinho Vivo

Moradores do Moinho em reunião com Fernando Haddad em 12 de julho de 2013. À direita do prefeito, o secretário municipal de Habitação José Floriano; à esquerda, o secretário de relações governamentais João Antonio da Silva Filho. Foto: Movimento Moinho Vivo

6. A derrubada do muro
Chegada a data prometida para a derrubada do muro, ninguém apareceu na comunidade para executar o serviço. De acordo com os moradores, apenas técnicos da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) estiveram no Moinho querendo saber o número de casas de alvenaria e madeira existentes para instalar os relógios de medição. Em 16 de julho, bombeiros visitaram a favela, caminharam por lá e, da mesma forma que chegaram sem falar com ninguém, foram embora sem fazer contato com a comunidade.

Em 29 de julho, aconteceu a primeira reunião do grupo de trabalho formado por moradores do Moinho e gestores públicos. O encontro foi realizado na Secretaria Municipal de Habitação, no centro da cidade, e contou com a presença de lideranças da favela e com o então chefe de gabinete da Subprefeitura da Sé, Maurício Dantas (hoje subprefeito interino). Segundo os moradores, pouco se avançou naquela primeira reunião. Ao contrário do que pediu a comunidade, não estava presente no encontro nenhum representante da Sehab ou da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, encabeçada por Fernando de Mello Franco.

Após duas semanas de atraso no prazo dado pelo prefeito para a derrubada do muro que divide a favela, os moradores do Moinho decidiram, por conta própria, abrir a rota de fuga. Em 30 de julho começaram a operação lenta de derrubada de 4 metros de largura da estrutura de concreto armado. Essa era a única parte possível de ser demolida, já que o restante do muro de 55 metros de extensão hoje serve de apoio a novas moradias, construídas após o incêndio de 2011.

Em 2 de agosto, uma sexta-feira, por volta das 18 hs, a líder comunitária Alessandra Moja recebeu no celular uma ligação curiosa: era João Antonio, secretário de Relações Governamentais, dizendo que os moradores do Moinho deveriam sair dali porque “o Ministério Público está em cima de nós”. “Não dá pra gente brigar com o mundo pra vocês ficarem aí”, disse o secretário. Ouça a gravação do telefonema abaixo:

Em relato no Facebook da comunidade, Caio Castor dá detalhes do telefonema. “O secretário ligou no celular da Alessandra (…) dizendo basicamente que não poderíamos permanecer na área e que eles tinham resolvido que daqui 2 anos e meio nós iríamos para o terreno da Rua do Bosque, no centro [terreno onde a prefeitura afirma, desde a administração anterior, que serão construídas moradias definitivas para a população do Moinho. As obras, no entanto, ainda não foram iniciadas]”. Para Castor, a “ligação atravessada” do secretário se deu por conta do início da derrubada do muro pela comunidade alguns dias antes, anunciada por meio das redes sociais.

O dia 4 de agosto, domingo, foi marcado pelo Segundo Grande Ato em prol da Favela do Moinho. Dessa vez, a manifestação foi realizada na própria favela. Houve apresentações de músicos da comunidade e a abertura oficial do muro, com britadeiras e marretas empunhadas pelos próprios moradores.

Em 4 de agosto acontece a derrubada oficial do "Muro da Vergonha", como foi batizada a estrutura de concreto armado que Kassab construiu dividindo a favela. Com marretas e britadeiras, os próprios moradores executaram o serviço prometido por Haddad para 15 de julho. Foto/Associação Moinho Vivo

Em 4 de agosto aconteceu a derrubada oficial do “Muro da Vergonha”, como foi batizada a estrutura de concreto armado que Kassab construiu dividindo a favela. Com marretas e britadeiras, os próprios moradores executaram o serviço prometido por Haddad para 15 de julho, mas não cumprido. Foto: Movimento Moinho Vivo

Foto/Associação Moinho Vivo

Foto: Movimento Moinho Vivo

Foto/Associação Moinho Vivo

Foto: Movimento Moinho Vivo

Foto/Associação Moinho Vivo

Foto: Movimento Moinho Vivo

Foto/Associação Moinho Vivo

Foto: Movimento Moinho Vivo

A Polícia Militar apareceu durante a tarde com o intuito de impedir a derrubada da estrutura, mas precisou recuar. Os PMs foram informados pelas lideranças sobre a decisão do juiz autorizando a abertura da rota de fuga e sobre o direito de os moradores permanecerem na área graças à tutela antecipada de usucapião concedida pelo juiz federal José Marcos Lunardelli em 2008.

Cerca de 30 PMs aparecem na favela para impedir a derrubada do muro, mas precisam recuar diante do laudo dos bombeiros recomendando a abertura da rota de fuga. Foto/Associação Moinho Vivo

Cerca de 20 PMs aparecem na favela para impedir a derrubada do muro, mas foram informados de decisão judicial baseada em laudo dos bombeiros recomendando a abertura da rota de fuga. Foto: Movimento Moinho Vivo


Em 5 de agosto de 2013 aconteceu a segunda reunião do grupo de trabalho formado por moradores e poder público para discutir a reurbanização da favela. Dessa vez, o encontro foi realizado na própria comunidade. Ao verem a abertura no muro feita um dia antes, os gestores não esconderam o ar de reprovação. Eles apresentaram aos moradores uma proposta da prefeitura. Entre os itens, algumas das reivindicações já feitas pela comunidade e um dado novo: o governo municipal pedia que as pessoas não reocupassem a área livre onde aconteceu o primeiro grande incêndio. Insatisfeitas com a oferta, as lideranças se comprometeram a fazer uma contraproposta a ser entregue dali uma semana, no dia 12 de agosto, durante a terceira reunião do grupo de trabalho.

Grupo de trabalho reunido em 5 de agosto na Casa Pública construída dentro da comunidade. Foto/Movimento Moinho Vivo

Grupo de trabalho reunido em 5 de agosto na Casa Pública construída dentro da comunidade. Foto: Movimento Moinho Vivo

Proposta levada pela prefeitura aos moradores. Foto/Movimento Moinho Vivo

Proposta levada pela prefeitura aos moradores. Foto: Movimento Moinho Vivo

7. Começa o silêncio do poder público
Em 8 de agosto, uma empreiteira contratada pela prefeitura criou a rota de fuga, que consistiu na retirada de parte do entulho do antigo prédio demolido e o mato que se acumulou em quase dois anos de abandono. A limpeza restringiu-se à criação de uma pequena faixa livre de lixo e vegetação que continuavam obstruindo a passagem dos moradores mesmo depois da derrubada parcial do muro.

Rota de fuga: empreiteira contratada pela prefeitura abre pequena faixa de área livre entre entulho e mato. Foto/Movimento Moinho Vivo

Rota de fuga: empreiteira contratada pela prefeitura abre pequena faixa de área livre entre entulho e mato. Foto: Movimento Moinho Vivo

Prevista para acontecer em 12 de agosto, a terceira reunião com o grupo de trabalho no Moinho não se realizou. Os integrantes do poder público não apareceram na favela na hora marcada e deixaram a comunidade esperando.

Sem aviso prévio, gestores faltam a encontro marcado com moradores da favela. Foto/Movimento Moinho Vivo

Sem aviso prévio, gestores públicos faltam a terceiro encontro do grupo de trabalho e deixam moradores da favela esperando. Foto: Movimento Moinho Vivo

Desde então, e até hoje, nenhum outro encontro semanal foi realizado, embora os moradores permaneçam aguardando a comissão da prefeitura sempre às segundas-feiras, às três da tarde, na Casa Pública da comunidade. As lideranças acreditam que a recusa do poder público em conversar é uma represália à não aceitação das propostas do governo municipal pelos moradores e à afirmação da comunidade de que voltariam a ocupar o terreno antes isolado pelo muro. “A maior preocupação deles era garantir que o terreno não fosse reocupado. Em todas as reuniões repetíamos seguidamente que ocuparíamos de forma organizada e em todas eles perguntavam e repetiam essa preocupação excessiva. Isso evidencia o quanto essa gestão está muito mais preocupada em tirar das pessoas do que garantir a segurança e os direitos”, afirma Flávia Lobo, membro do Movimento Moinho Vivo.

Reocupação do terreno
Com a rota de fuga criada, em 23 de agosto os moradores fizeram o Terceiro Grande Ato em prol da favela com uma reocupação simbólica do terreno onde aconteceu o incêndio de 2011. Eles capinaram o campo, limparam, tiraram entulho e cinzas. Durante a reocupação, instalaram a estrutura de madeira do que será a sede da associação de moradores. Essa retomada do terreno vinha sendo discutida há tempos no âmbito do Projeto Comboio, em parceria com a comunidade. A proposta é que a reocupação da área, que ainda não foi iniciada, seja feita de forma organizada para permitir, inclusive, que as obras de saneamento e instalações elétricas prometidas por Haddad possam ser feitas na favela. Segundo laudo dos bombeiros de 2012, para realizar as melhorias será preciso desadensar algumas áreas. O novo espaço aberto pelos moradores no antigo terreno será essencial para receber os barracos dos que tiverem de deixar suas casas para as obras de melhorias.

Moradores capinam e limpam o terreno do qual estavam isolados desde 2011 por conta do primeiro grande incêndio. Reocupação da área pela comunidade será feita de forma planejada. Foto/Movimento Moinho Vivo

Moradores capinam e limpam o terreno do qual estavam isolados desde 2011 após a construção do muro. Reocupação da área pela comunidade será feita de forma planejada. Foto: Movimento Moinho Vivo

Foto/Movimento Moinho Vivo

Embora empreiteira contratada pela prefeitura tenha aberto uma pequena faixa para a rota de fuga, o trabalho pesado de limpeza do terreno foi feito pelos moradores. Foto: Movimento Moinho Vivo

Moradores constroem estrutura do que será a sede da Associação da Comunidade do Moinho. Foto/Movimento Moinho Vivo

Moradores erguem estrutura do que será a sede da Associação da Comunidade do Moinho. Foto: Movimento Moinho Vivo

Foto/Movimento Moinho Vivo

Foto: Movimento Moinho Vivo

8. Aumentam as incursões da polícia
Desde o início das manifestações da comunidade pelo cumprimento das promessas de campanha de Fernando Haddad, a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana intensificaram suas incursões na favela, sempre com armas em punho e postura intimidadora diante da comunidade, denunciam os moradores. Além disso, desde a derrubada do muro, em 4 de agosto, as lideranças da favela não conseguiram mais marcar reuniões do grupo de trabalho com o poder público nem fazer contato consistente com os gestores, seja por telefone ou e-mail.

Guardas Civis entram na favela em 9 de setembro para impedir que moradores ocupem o terreno que antes estava isolado pelo muro de Kassab. Com a ação registrada pelas câmeras dos moradores, os oficiais recuam. Foto/Movimento Moinho Vivo

Guardas Civis entram na favela em 9 de setembro para impedir que moradores ocupem o terreno que antes estava isolado pelo muro de Kassab. Com a ação registrada pelas câmeras dos moradores, os oficiais recuam. Foto: Movimento Moinho Vivo

Em 10 de setembro de 2013, a PM fez uma nova incursão no Moinho. Naquele dia, acontecia nos fundos da favela uma assembleia com moradores, funcionários da Sehab municipal e o promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo Maurício Ribeiro Lopes. A assembleia foi interrompida por um morador que avisou que a PM estava “barbarizando” a comunidade. Lopes foi instado pelos presentes a intervir junto aos policiais. Acompanhado por dezenas de moradores, o promotor se dirigiu ao barraco onde estavam os policiais, supostamente à procura de um traficante. Após uma breve conversa, os PMs deixaram a favela “escoltados” por Lopes e sob os gritos de “Fora!” dos moradores. No vídeo a seguir, o promotor aparece em uma ligação explicando o ocorrido ao assessor do secretário de Segurança Pública, Eduardo Grella. Sobre a audiência do dia 10 de setembro falaremos mais abaixo, no item “Ou vai ou racha. Racha”.

9. PPP, CPTM e Secretarias
Em 29 de abril de 2013, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação, a Sehab, informou ao repórter Luciano Onça, da “Agência Pública”, que a Favela do Moinho seria erradicada e que as famílias seriam atendidas com unidades habitacionais definitivas. A informação ia na contramão da promessa feita por Haddad em 2012, de regularizar a questão fundiária da favela e reurbanizá-la.

A partir dessa declaração oficial, o Arquitetura da Gentrificação começou a investigar quais os planos concretos do poder público para o terreno. O silêncio repentino da prefeitura sobre as demandas da comunidade após a derrubada do muro, as incursões policiais na favela e a ligação do secretário João Antonio para Alessandra deixavam entrever que Haddad estava mesmo disposto a descumprir sua promessa de campanha.

Em mãos, tínhamos três caminhos para a apuração: o primeiro, a ligação do secretário municipal de Relações Governamentais a Alessandra comunicando a necessária saída dos moradores da Favela do Moinho; o segundo, a Parceria Público-Privada entre governo do Estado, município e empreiteiras para a construção de 20 mil unidades de habitação popular no centro da cidade. Em documentos oficiais, a área do Moinho está inserida no perímetro do projeto, conhecido como PPP de Habitação do Centro, e que prevê a desapropriação de mais de 900 imóveis na região central para a construção das moradias.

Por fim, tínhamos um vídeo da CPTM divulgado em 2012 detalhando o enterramento dos 12 km de trilhos do trecho Lapa-Brás, e a construção, na superfície desse enterramento, de avenidas, ruas, parques e edifícios. A Favela do Moinho aparece no vídeo quando se mostra os trilhos na atualidade. Com a projeção em 3D das futuras obras concluídas, a comunidade desaparece no vídeo, e em seu lugar surge a estação Campos Elíseos da CPTM.

Os trilhos representam um entrave para o mercado imobiliário, uma vez que cindem aquele trecho da cidade, dificultando transposições e retirando espaço linear de possíveis construções. Da mesma forma, a Favela do Moinho também é um problema para as construtoras, já que favelas desvalorizam os imóveis no seu entorno.

O projeto de enterramento dos trilhos estava previsto na Operação Urbana Consorciada Lapa-Brás, de 2011. O projeto não foi adiante porque nenhum concorrente da licitação preencheu os requisitos mínimos.

10. CPTM primeiro
A assessoria de imprensa da CPTM confirmou à reportagem que a empresa “está desenvolvendo projeto funcional para a nova estação na região central de São Paulo. A conclusão do estudo, prevista para o final deste ano [2013], indicará a melhor localização para implantação da nova estação, bem como seus acessos, contemplando a inserção urbana. A construção dessa estação dependerá também de entendimentos com outros órgãos para negociação de área no entorno da região onde ficava [sic] a favela do Moinho”.

“A nova estação”, prossegue a assessoria, “terá o papel de melhorar a distribuição de demanda no eixo estruturador das linhas da CPTM, aliviando a transferência entre as linhas da CPTM na Estação da Luz”. O nome da nova estação informado pela assessoria no título do e-mail de resposta era Bom Retiro, e não Campos Elíseos, como aparece no vídeo de 2012 da companhia.

Em 31 de agosto deste ano, o jornal “Folha de S. Paulo” publicou reportagem anunciando a criação de nova estação de trem no centro da cidade. No texto, a nova estação era citada em uma única frase dita pelo secretário estadual de Transportes Metropolitanos, Jurandir Fernandes, como estação Campos Elíseos, a ser construída em frente à Luz. O nome anunciado pelo secretário não bate com o nome da estação informada, via e-mail, pela assessoria da CPTM. Da mesma forma, a localização dada por um e outro diverge um pouco: a estação Bom Retiro, ao que parece, fica no entorno imediato à Favela do Moinho; já a Campos Elíseos fica em frente à Luz, distante cerca de dois quilômetros da favela.

Apesar das disparidades pontuais de nomes e localização, os planos de nova estação da CPTM são claros, e têm potencial para se sobrepor à favela, dada a magnitude das obras do gênero feitas em São Paulo.

11. Esconde-esconde da PPP
Para saber se haveria conflito ou complementação entre o projeto da CPTM e a Parceria Público-Privada de Habitação dos governos do Estado e do município, a reportagem fez contato com a Secretaria Estadual de Habitação. Por e-mail, a assessoria da Sehab estadual respondeu que “não prevê, em seu projeto de PPP – Parceria Público Privada para viabilização de empreendimentos habitacionais no centro paulistano, intervenções diretas na Favela do Moinho. Isso porque consta que a Secretaria Municipal de Habitação tem um projeto específico para a área”.

A afirmação da Sehab estadual contraria o que está escrito no edital de chamamento da Casa Paulista, agência do Estado que coordena a PPP. No documento, o Moinho é citado no setor A do projeto subdividido em seis lotes que sofrerão intervenção urbana. Com base na informação recebida, solicitamos à assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação uma entrevista com o secretário José Floriano. A entrevista foi negada com o argumento de que Floriano estava sem agenda para nos receber. Pediram que enviássemos as perguntas por e-mail, o que foi feito em seguida. A questão principal era saber quais eram os planos que a Sehab municipal tinha para o Moinho.

Simultaneamente ao contato com esta secretaria, procuramos a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Relações Governamentais para saber detalhes sobre o telefonema do secretário João Antonio da Silva Filho para Alessandra Moja, moradora do Moinho, em 2 de agosto.

Nossas dúvidas eram: que tipo de pressão ele alegou estar sofrendo do Ministério Público? Por que o poder público deixou de comparecer às reuniões com o grupo de trabalho na favela desde 12 de agosto? Por que retirar os moradores da Favela do Moinho se a promessa de Fernando Haddad era exatamente o oposto? A entrevista pessoal com o secretário também foi negada por falta de agenda, e pediram o envio das perguntas por e-mail, o que também foi feito em seguida.

Em 20 de agosto, a assessoria de imprensa do secretário João Antonio enviou à reportagem uma nota oficial dizendo, entre outras coisas, que “em face do processo de negociação da Prefeitura de São Paulo com a comissão de representantes dos moradores da Comunidade do Moinho, a Secretaria Municipal de Relações Governamentais (SMRG) e a Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) informam que a administração municipal cumpre seu papel de manter um canal permanente de conversação com as lideranças locais, seja na sede do governo, seja na própria comunidade, como já foi feito em diversas ocasiões, com a presença de técnicos e equipes da Secretaria Municipal de Habitação, da Secretaria Municipal de Relações Governamentais e da Subprefeitura da Sé”.

A nota foi assinada por João Antonio e pelo secretário municipal de Habitação, José Floriano. Nenhuma das cinco perguntas pontuais enviadas por e-mail anteriormente foi respondida. Por telefone, entramos em contato com Djair Galvão, assessor de imprensa da Secretaria Municipal de Relações Governamentais para obter as respostas. O assessor continuou sem responder com precisão às questões objetivas, disse que o assunto era “delicado” e que o órgão que teria as informações sobre possíveis planos do governo para a Favela do Moinho era a Secretaria Municipal de Habitação.

Também por telefone, fizemos contato com a assessoria de imprensa da Sehab municipal. Contradizendo o colega Djair Galvão, o assessor Nivaldo Carboni disse que as informações sobre o Moinho estão a cargo da Secretaria Municipal de Relações Governamentais e que a secretaria para a qual ele trabalha não tem nenhum plano concreto para a Favela do Moinho. Confrontado com informações da Sehab estadual que o contradiziam, Carboni se irritou: “eu já te disse, não adianta você ficar me cercando, eu não tenho informações sobre isso [sobre os planos para o Moinho que a Sehab estadual afirma que a Sehab do município tem]. Por fim, questionado sobre a nota que sua assessoria emitiu em 29 de abril de 2013 dizendo que a Favela do Moinho seria erradicada, Nivaldo Carboni disse que a informação não procede, mas que também não estava “desmentindo ninguém”.

12. Mapeamento e clareza
Não é de se estranhar o empurra-empurra de uma secretaria para outra e o mistério em torno da PPP de Habitação do Centro e dos planos para o Moinho no contexto desse projeto. Anunciada pelo governo do Estado em abril de 2012, a PPP nunca foi devidamente exposta à apreciação da sociedade quando ainda estava em fase de elaboração. O Instituto Urbem, vencedor da licitação para desenvolver o projeto, concluiu os estudos em outubro de 2012. Mais de um ano depois, esses documentos nunca foram apresentados na íntegra à população.

Em junho de 2013, o governador Geraldo Alckmin assinou um decreto desapropriando mais de 900 imóveis no centro da cidade para serem usados como moradia na PPP. Em tese, os imóveis estavam vazios ou subutilizados. Eram “vazios urbanos”, como informou Milton Braga, um dos arquitetos do Urbem que desenvolveu o projeto.

Mas não demorou até que os primeiros proprietários atingidos pelo decreto, dezenas deles, viessem a público reclamar estarem sendo desalojados de suas casas e comércios há anos consolidados. Diante de tantos desencontros e obscuridades, o promotor de Justiça Maurício Ribeiro Lopes, da Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público, decidiu intervir, e conseguiu, por meio de liminar concedida pela Justiça em 23 de agosto, suspender temporariamente a PPP. Em atitude inesperada, porém, o desembargador Xavier de Aquino, que havia paralisado o projeto, voltou atrás e revogou a própria liminar em 16 de outubro, pondo fim à suspensão da PPP. A ação ainda segue na Justiça e espera a decisão de outros dois desembargadores.

Embora as três secretarias consultadas pela reportagem tenham se furtado a responder objetivamente às questões sobre a PPP e o Moinho, um mapeamento dos imóveis desapropriados feito de forma independente deixou visível, literalmente, os possíveis planos do poder público para a favela. Com uma lista com mais de 900 endereços contemplados no decreto e a ajuda do Google Maps, a bióloga Cláudia Roedel, administradora da página “Desalojados do Alckmin” no Facebook e membro da Associação Acorda Brasil, que está sendo criada para dar suporte aos moradores afetados pela PPP, vem marcando no mapa virtual cada um dos imóveis que serão desapropriados. O mapeamento ainda está em processo, mas os achados de Cláudia até o momento são reveladores sobre os planos de Alckmin e Haddad para a região onde está o Moinho.

No mapa, a Favela do Moinho aparece cercada por propriedades que darão lugar às novas e “requalificadas” moradias propostas no projeto do governo estadual.

Mapeamento feito por Claudia XXXX, administradora da página "Desalojados do Alckmin" no Facebook. Moinho está no epicentro de área que será "revitalizada"

Áreas coloridas correspondem aos imóveis que constam no decreto de desapropriação assinado pelo governador Geraldo Alckmin. Favela do Moinho aparece no epicentro da área em Campos Elíseos que será “requalificada” pela PPP de Habitação do Centro. Mapeamento feito por Cláudia Roedel

Ali, onde o vídeo da CPTM feito em 2012 mostra uma estação de trem, onde a assessoria de imprensa da CPTM aponta a criação de uma estação de trem, e onde o secretário de Transportes Metropolitanos sugere que será construída uma estação de trem, está cravada a área da qual faz parte a Favela do Moinho. Em um projeto de R$ 4,6 bilhões como a PPP de Habitação, que prevê a “requalificação” urbana da região central para abrigar famílias que ganham até 16 salários mínimos (mais de R$ 12 mil) e que tem como agentes de construção os governos estadual e municipal de acordo firmado com grandes empreiteiras, é evidente que favela alguma compõe bem com a paisagem.

A Favela do Moinho está marcada para ser riscada do mapa.

13. Ou vai ou racha. Racha
Conforme o tempo passa e os certames para a execução da PPP e da nova estação de trem se aproximam, é cada vez mais urgente a retirada dos moradores da área do Moinho. Agora o poder público municipal passou a usar outro artifício para acelerar o desmonte da favela. Sem que ninguém estivesse esperando – e sem que a comunidade fosse consultada –, Maria José Calderine, da Secretaria Municipal de Habitação, marcou uma assembleia geral no Moinho para 10 de setembro. A funcionária limitou-se, por telefone, a comunicar a data ao Escritório Modelo da PUC, que dá assessoria jurídica aos moradores, e perguntar se estariam presentes na assembleia. O Escritório Modelo repassou o recado à comunidade, que recebeu a notícia com surpresa.

Na data marcada, os moradores se reuniram no terreno recém-capinado nos fundos da favela, onde aconteceu o primeiro grande incêndio. Ali, foram instalados um microfone e uma caixa de som para Maria José se pronunciar. Acompanhando a funcionária da Sehab estava o mesmo promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo Maurício Ribeiro Lopes, que conseguiu liminar suspendendo temporariamente a PPP.

O tópico mais importante da reunião foi a bolsa-aluguel. Não aquela paga aos antigos moradores do Moinho que ficaram sem suas casas por conta dos incêndios e que precisaram alugar um barraco longe dali, mas sim a que a Secretaria Municipal de Habitação estava disposta a pagar para que os moradores remanescentes do Moinho saíssem de lá. Ao aceitar o auxílio, explicou Maria José na reunião em 10 de setembro, o morador teria de se mudar da favela, e seu barraco seria destruído em seguida para que não houvesse nova ocupação.

A tática não é nova, denunciam militantes pelo direito à moradia: o poder público se omite na obrigação de resolver os problemas de saneamento básico da favela, perpetuando a precariedade da vida de quem nela mora. Depois, acontecem as incursões policiais intimidadoras, as ameaças de despejo e o silêncio do governo sobre o futuro da comunidade. Em seguida, surge a oferta da bolsa-aluguel para que os habitantes tentem uma moradia melhor fora da área, com a promessa de que uma habitação definitiva será dada pelo governo num futuro próximo. Quando e onde essa habitação será entregue, não é dito.

O cansaço, a insegurança e o medo do despejo fazem que alguns moradores aceitem a oferta da bolsa, suficiente para pagar aluguel numa outra favela ou cortiço longe dali. Com a favela esvaziada, mina-se a resistência da comunidade, e a retomada do espaço pelo poder público torna-se mais fácil.

A tática do governo Haddad, que culminou com a bolsa-aluguel oferecida pela Sehab, é a mesma usada por Gilberto Kassab em sua gestão para tentar reaver o terreno do Moinho. Alguns dias antes da visita surpresa de Maria José Calderine à favela, Caio Castor havia relatado o que a mesma Sehab municipal fez em 2012 com os moradores, tentando retirá-los do terreno por vias aparentemente “não-violentas”.

14. Arco Tietê: sai o Moinho, entra o mercado
Enquanto esta reportagem era produzida, a Prefeitura de São Paulo lançou, em setembro, o hotsite oficial do Arco Tietê, parte central do megaprojeto de intervenção urbana chamado Arco do Futuro, carro-chefe da campanha de Fernando Haddad em 2012. O objetivo do Arco Tietê é criar diversas centralidades espalhadas ao longo das marginais do rio Tietê, gerando polos de emprego, ampliando e ramificando o viário e aproximando, assim, moradia, trabalho e transporte. O projeto abarca pelo menos 22 bairros da cidade em cerca de 5 milhões de metros quadrados, e está previsto para ser realizado ao longo de 30 anos e ao custo de “dezenas de bilhões de reais”, como informou o secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano, Fernando de Mello Franco.

E o Moinho está no arco de Fernando Haddad. Na proposta de viabilidade do Arco Tietê apresentado no hotsite da prefeitura e que serve de diretriz aos consórcios que apresentarão projetos, na área da favela estão contempladas duas importantes intervenções: o enterramento dos trilhos e a criação de um equipamento público que servirá como “projeto indutor”. “No Estatuto da Cidade, o termo ‘indutor’ tinha o objetivo de forçar a terra urbana a cumprir sua função social”, informa a arquiteta e urbanista Luciana Itikawa, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. Luciana diz que é importante, no entanto, distinguir os Instrumentos Indutores de Desenvolvimento Urbano do Estatuto da Cidade dos “projeto indutores” e “obras indutoras”.

“‘Instrumento Indutor’, de fato, é um termo técnico mas, nesse caso, ‘projeto indutor’ ou ‘obra indutora’ estão sendo utilizados no Projeto Arco Tietê como âncoras inseridas em projetos abrangentes de mudança de uso e ocupação do solo, e não parece que têm o mesmo viés de correção, como o IPTU progressivo no tempo, ou os PEUCs (Parcelamento, Edificação ou Utilização compulsórios), que, teoricamente, foram pensados para forçar o uso de terrenos vazios ou ociosos que eram inutilizados muitas vezes com o propósito de retenção especulativa”, explica Luciana.

Um “projeto indutor”, nesse caso uma possível estação de trem na área do Moinho, é um equipamento que irá reconfigurar toda a orla e, sobretudo, irá adensar o entorno, segundo as regras do Plano Diretor Estratégico, que determina a potencialização do uso da terra nas áreas onde há transporte de massa. No entanto, da maneira como está sendo mostrado no Arco Tietê, o “projeto indutor” poderá ter um efeito contrário, segundo a urbanista. Em vez de garantir a democratização do direito à cidade, poderá gerar valorização imobiliária do entorno e afastar da região a população de menor renda. “Não está claro se as famílias que seriam removidas devido às obras da estação e ao encarecimento do entorno poderão ser contempladas em programas habitacionais sociais na região”, diz Luciana Itikawa.

Assim como no projeto de PPP de Habitação e no projeto de criação de uma nova estação da CPTM, até o momento os moradores da Favela do Moinho não foram consultados sobre suas necessidades e planos pelos gestores responsáveis pelo Arco Tietê.

Proposta de viabilidade do Arco Tietê serve de diretriz para empresas e consórcios que apresentarão projetos ao poder público. Favela do Moinho está em área de valorização imobiliária. Imagem: Divulgação Prefeitura de São Paulo

Proposta de viabilidade do Arco Tietê serve de diretriz para empresas e consórcios que apresentarão projetos ao poder público. Favela do Moinho está em área de valorização imobiliária. Imagem: Divulgação Prefeitura de São Paulo

15. Novo laudo, nova aposta
Por fim, a mais recente ameaça à permanência da comunidade na Favela do Moinho: um novo laudo do Corpo de Bombeiros, emitido em 1º de agosto de 2013, recomenda a desocupação imediata da área por medidas de segurança. O documento foi conseguido por acaso pelos moradores por meio de um funcionário da CPTM. Em contatos feitos com a prefeitura após a data de sua emissão, a gestão Haddad afirmava que ainda não estava pronto.

Com distância de menos de um ano entre um laudo e outro, os dois documentos são muito parecidos em seu conteúdo no que se refere à recomendação da criação da rota de fuga. No entanto, no documento deste ano, na última das 30 linhas que o compõem, foi adicionada a frase: “sob o aspecto de segurança contra incêndio a solução é a imediata desocupação do local”.

Na reunião que teve na prefeitura com lideranças da favela em 12 de julho, Fernando Haddad fez um comentário que ganha outros contornos diante do novo documento dos bombeiros: “aquele terreno, se não for urbanizado em função de questões técnicas e jurídicas [grifo nosso], não vai servir à exploração privada”.

Minutos depois da fala do prefeito, o secretário Municipal de Habitação José Floriano insistiu na necessidade de uma nova avaliação do Corpo de Bombeiros mesmo com um laudo já pronto, e declarou: “pode ser que não seja o muro que eles queiram [derrubar], pode ser o outro lado… o que eles definirem a gente faz [grifo nosso]”.

Um dia antes daquela reunião com o prefeito, o mesmo Floriano, em visita à Favela do Moinho, já havia “adiantado” aos moradores que só poderia dar uma data de início das obras de melhoria em 10 de agosto – mesmo mês de emissão do laudo.

Com a potencial não urbanização por motivos técnicos – o novo parecer dos bombeiros, nesse caso –, com um claro interesse da CPTM pelo local para a criação de uma nova estação, e com a valorização do preço da terra com a PPP e o Arco Tietê no entorno do Moinho, parece estar pronto, já há algum tempo, o cenário que pode por fim à última favela do centro da cidade.

Embora seja foco de disputa, a Favela do Moinho é motivo de união: união dos interesses que movem governos estadual e municipal, CPTM e setor imobiliário em direção àquela região. Para todos os efeitos, a Favela do Moinho é o que unifica o discurso e as políticas públicas de Alckmin e Haddad, na medida em que ambos veem e tratam a comunidade como o entrave ao progresso a ser erradicado do centro da mais rica cidade da América Latina.

A reportagem tentou ouvir o governador Geraldo Alckmin e o prefeito Fernando Haddad sobre o caso. A assessoria de Alckmin informou que a posição oficial do governador é a mesma da Sehab estadual e da CPTM. A assessoria de Fernando Haddad não enviou qualquer resposta até o fechamento desta matéria.

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As forças que disputam o centro https://gentrificacao.reporterbrasil.org.br/as-forcas-que-disputam-o-centro/ Wed, 18 Sep 2013 03:20:55 +0000 https://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/?p=135

Em entrevista ao Arquitetura da Gentrificação, a urbanista Ermínia Maricato fala, entre outros assuntos, sobre a disputa histórica pelo centro de São Paulo e as estratégias do mercado e do poder público para erguerem uma cidade para as elites

Por Sabrina Duran

O centro de São Paulo está sob disputa e não é de hoje. Faz décadas, diz a urbanista Ermínia Maricato, professora titular aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “Todo governo, desde o Faria Lima, faz um plano que prevê que tem de ter moradia popular no centro”, informa, referindo-se ao ex-prefeito de São Paulo José Vicente de Faria Lima, que assumiu a administração da cidade entre 1965 e 1969.

De um lado da disputa estão os habitantes da metrópole, especialmente os de baixa renda, que querem fixar residência na área central porque lá encontram as principais virtudes de toda cidade: entroncamento de todos os meios de transporte público – metrô, trem e ônibus –, abundância de emprego (20% dos empregos formais da capital paulista, por exemplo), estrutura de comércio, serviços, equipamentos culturais, hospitais, escolas, universidades e, facilitando o acesso a tudo isso, a diversidade de rendas que torna o Centro um dos lugares mais democráticos da cidade.

Do outro lado da corda aparecem dois agentes. O poder público, com seus planos urbanísticos, e o mercado imobiliário, que os orienta segundo seus interesses por meio de um lobby poderoso: o financiamento maciço de campanhas políticas (leia a reportagem “Doações de campanha e a cultura do segredo”).

A última vez que essa disputa histórica esteve prestes a ser decidida por um dos lados foi em 2012, quando o ex-prefeito Gilberto Kassab (então DEM, atual PSD) quase conseguiu levar adiante o Projeto Nova Luz, herança de seu antecessor, José Serra (PSDB). O projeto previa a concessão de 45 quadras na região da Luz e Santa Ifigênia a empresas privadas para que estas desapropriassem a área e construíssem sobre ela, beneficiando-se, consequentemente, com as altas taxas de lucro dessa operação. A população local reagiu e barrou o plano com uma ação civil pública ancorada no argumento da falta de participação popular na elaboração e execução do projeto.

Em 2013 a disputa segue, mas agora com outra cara e outro nome: parceria público-privada, ou “PPP de habitação do Centro”. Trata-se de um projeto da Agência Casa Paulista, do Governo Estadual, em parceria com a Prefeitura e empresas privadas, para construir no centro da cidade 20.221 unidades habitacionais de interesse social, ou seja, para pessoas de baixa renda.

O porém, segundo urbanistas, defensores públicos e movimentos sociais que assinaram uma manifesto sobre a PPP, é que do total de moradias, apenas 6.560 unidades estão destinadas a famílias que recebem de 1 a 3 salários mínimos – mais de 80% do déficit habitacional do país concentra-se em famílias nessa faixa de renda. As demais unidades estão reservadas a famílias que ganham de 4 até 10 salários mínimos.

Para quem não tem qualquer receita ou renda inferior a um salário, como pessoas em situação de rua, não há moradia prevista no projeto.

“Não há porque tem o interesse das operadoras”, enfatiza Ermínia Maricato, referindo-se às empresas privadas que serão os atores principais nesse plano do governo paulista.

A urbanista concedeu uma longa entrevista ao Arquitetura da Gentrificação, na qual falou sobre reforma fundiária, movimentos sociais, aplicação seletiva de leis e desafios na construção de políticas públicas de habitação e mobilidade que beneficiem a classe trabalhadora.

Neste primeiro vídeo, Ermínia Maricato fala da disputa histórica pelo centro de São Paulo, das estratégias do mercado e do poder público para erguerem uma cidade para as elites e de um antídoto possível contra o processo de gentrificação que acaba “higienizando” bairros inteiros onde são feitas intervenções urbanísticas.

Ermínia já foi secretária executiva do Ministério das Cidades (2002-2005), secretária municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano durante o governo de Luiza Erundina (1989-1992) e conselheira do Habitat, programa da Organização das Nações Unidas (ONU) para assentamentos humanos. Já tendo passado pela esfera institucional, hoje ela afirma que a disputa pelo espaço público se dá no chão da própria cidade, onde se desenrola uma autêntica luta de classes.

 

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